1ª Parte
O PATRIMÔNIO DE SÃO MIGUEL
“A bênção e inauguração da Igreja foi,
por assim dizer, o começo oficial do Patrimônio, Povoado, ou mesmo, Futura Cidade
de S. Miguel.”[1]
Capítulo I
ANTECEDENTES
HISTÓRICOS
1. Descobrimento de Goiás
Numerosos
historiadores, preocupados em levantar a história do nosso Estado, têm feito
referência à bandeira de Manoel Corrêa aos sertões dos araés, atribuindo-lhe a
descoberta das terras ocupadas pelos índios da nação Goyá.
Outros tantos contam que, em 1.674,
Bartolomeu Bueno da Silva, aqui chegando, constatou logo a existência de ouro
fácil e abundante, pois as mulheres indígenas usavam em seus colares e enfeites
pedaços daquele precioso metal. Encontrou, porém, certa resistência por parte
dos silvícolas para que lhe fosse mostrada a mina. Diante disso, usou o ardil
de atear fogo em um pote de barro com aguardente, ameaçando-os de fazer o mesmo
com os rios e a eles próprios, fato que os deixou amedrontados e apavorados.
Vendo aquele ato inusitado, os nativos
deram-lhe o cognome de Anhanguera, que significa “Diabo Velho”, ou “Homem de
espírito mau que provoca pesadelos”. O local é onde se acha Vila Boa, hoje, cidade
de Goiás.
Ao regressar à Capitania de São Paulo, Bartolomeu Bueno deixou terras
cultivadas, mas levou enorme quantidade de ouro e índios que dariam para povoar
uma cidade. A bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva é considerada a que
realizou a descoberta de Goiás.
Contam ainda que, quando Anhanguera
adentrou o território dos Goyazes, levou em sua companhia um filho ainda jovem,
com o mesmo nome seu, que guardou na mente as lembranças do itinerário do
passado. Mais tarde, com o falecimento de seu genitor, o filho de Bueno, já
adulto, procurou o então Governador da Capitania de São Paulo, Rodrigo César de
Menezes, oferecendo-lhe seus préstimos e serviços, no sentido de fazer a mesma
viagem de Anhanguera. O projeto foi aceito, tendo-lhe sido fornecidos recursos
e a recompensa da cobrança de pedágio nos rios.
O segundo Bartolomeu Bueno partiu de
São Paulo no ano de 1721 com numerosa comitiva. Ao chegar, encontrou inúmeras
dificuldades. E ao alcançar as margens do Rio Paranã, desentendeu-se com os
companheiros de comitiva, resultando na separação do grupo e no conseqüente
fracasso da expedição. Bueno retornou a São Paulo, sozinho e envergonhado,
evitando, por isso, encontrar-se com o Governador.
Tempos depois, Bartolomeu foi
convencido pelo Governador a programar uma segunda viagem, o que efetivamente
ocorreu em 1726, quando, finalmente, encontrou o local onde, na sua infância,
estivera com seu pai. E aí ergueu o Arraial dos Ferreiros, próximo de Vila Boa.
Retornou a São Paulo com 8.000 oitavas de ouro, oportunidade em que o
Governador o nomeou para o cargo de superintendente das minas de Goiás.
Em São Paulo, a façanha foi muito
festejada. Por isso Bartolomeu Bueno foi elevado à fama de “explorador dos
descobrimentos de Goiás”. E a notícia do ouro atraiu para Goiás muitos
aventureiros, iniciando a fundação de vilas e arraiais. Foi em meados do século
XVIII que a mineração teve o seu índice mais elevado e representou para a economia
da Província expressivo lucro.
Na corrida desenfreada do ciclo do
ouro, foram fundados diversos arraiais e vilas na vasta e rica Província de
Goiás. Dentre elas inclui-se Santa Cruz, uma das primeiras a ser fundada e das
mais importantes na época.
2. O Julgado de Santa Cruz
O Capitão-General Rodrigo César de Menezes, nomeado
por Alvará Régio Governador da Capitania de São Paulo, em 5 de setembro de
1721, tomou posse na mesma data e governou durante quase seis anos,
afastando-se do cargo em 15 de agosto de 1727. Dentro de suas atribuições
legais, ordenou a Manoel Dias da Silva que se deslocasse até as minas de Cuiabá,
mineração essa também sujeita à Capitania de São Paulo. Seguindo o caminho
desejado, e já em terras da tribo dos Goyazes, Dias da Silva ateve-se em um
determinado sítio para repouso da grande comitiva.
De imediato, mandou que se fizesse o que era comum
naquele tempo: pesquisa para investigar a existência de ouro. E de fato
constatou-se que havia ouro em grande quantidade e de ótimo teor. Em
agradecimento a Deus pela valiosa descoberta, erigiu uma grande cruz com a
seguinte inscrição: “Viva El Rei de Portugal”
Com esse gesto, Dias da Silva deu àquele sítio – o
futuro arraial – o nome de Santa Cruz. O auspicioso evento ocorreu em 27 de
agosto de 1729 e constituiu-se no ato solene por excelência de fundação de
Santa Cruz.
Em 8 de novembro de 1744, foi criada a Capitania de
Goiás, por Alvará Régio, independente da Capitania de São Paulo. E através de
Carta Régia de 1809 é criado o Julgado de Santa Cruz, na gestão do Governador
Capitão-General Dom Francisco de Assis Mascarenhas. Nesse mesmo ano, e por Decreto
Provincial, a Capitania de Goiás foi dividida em duas Comarcas: a do Norte e a
do Sul.
A Comarca do Norte, com correição da Comarca de São
João das Duas Barras, compreendeu oito Julgados: Porto Real, Natividade,
Conceição, Arraias, São Félix, Cavalcanti, Flores e Traíras. A Comarca do Sul,
com sede em Vila Boa, recebeu o nome de Comarca de Goiás e compôs-se de seis Julgados,
sujeitos à correição da mesma Comarca: Vila Boa, Crixás, Pilar, Meia Ponte,
Santa Luzia e Santa Cruz.
O território do Julgado de Santa Cruz era quase do
tamanho de Portugal, sem o Algarve, e existia na região oeste imensa área de
terra desabitada e desconhecida. Eram os seguintes os seus limites:
“Tomando para
o primeiro ponto da divisão do Julgado de Santa Cruz o sítio de Paracaupeba,
desce por esse ribeirão em busca do Corumbá e por ele à barra do Rio São
Bartolomeu; deste ponto se buscará a barra do Rio São Marcos e seguindo por ele
até o cume da serra, descerá pelas cabeceiras dos Dourados até a sua foz, no
Rio das Velhas, da qual tirando uma reta à barra do Sapucaí e descendo a demarcação
por ele até o Rio Grande e barra do Corumbá e seguindo por este até topar o Rio
Anicuns, fecha-se a divisão no Ribeirão dos Bois, no ponto onde se divide o
Julgado de Vila Boa e de Meia Ponte, cortando, em linha, a estrada de São
Paulo, onde passa o Rio Piracanjuba”
3. O Município de Silvânia
Verifica-se, portanto, que Santa Cruz dominou todo o sudoeste e parte do sul de Goiás. Em
1809, época da criação do Julgado de Santa Cruz, o seu território de influência
possuía imensa área, limitando-se com a Comarca de Paracatu, Província de Minas
Gerais, e com a Província de São Paulo.
Pela Resolução nº 2, datada de 2 de
abril de 1833, do Conselho Geral da Província, Goiás foi dividida em quatro
Comarcas, assim distribuídas:
“Art. 2º - A
Comarca de Goiás compreenderá os termos da cidade de Goiás e das vilas de
Jaraguá, Meia Ponte, S. José do Tocantins, Traíras e Pilar. A de Santa Cruz
compreenderá os termos das vilas de Santa Cruz, de Bonfim, de Catalão e de
Santa Luzia. A Comarca de Cavalcanti compreenderá os termos das vilas de
Cavalcanti, Flores e Arraias. A Comarca de Palma compreenderá os termos das
vilas de S. João da Palma, de Natividade, de Porto Imperial e de Carolina.”
Mais tarde, as vilas e povoados foram desenvolvendo-se, a população
aumentando, e as cidades tornaram-se independentes. Assim aconteceu com
povoações que pertenciam a Santa Cruz, e dentre elas, Catalão, Bonfim
(Silvânia), Campo Formoso (Orizona), Vila Bela de Morrinhos, Santa Rita do Paranaíba
(Itumbiara), Pouso Alto (Piracanjuba), Caldas Novas.
Dizem os mais eminentes
historiadores interessados pelo assunto que, possivelmente, a origem do arraial
do Bonfim remonta ao ano de 1774, sob a forte influência da mineração. Era o
ciclo do ouro que borbulhava em efervescência.
Em 1782, Bonfim alcançou a condição
de capela curada, sob a jurisdição de Santa Cruz, e somente a 26 de outubro de
1833 conseguiu o status de paróquia,
tendo sido o primeiro vigário colado Padre Antônio Tomás de Campos.
A criação da Vila de Bonfim se deu
por força de Resolução do Conselho Administrativo da Província de Goiás, logo
confirmada pelo Governo Imperial, nos termos da Resolução que segue:
“A Regência, em nome do Imperador e
Senhor D. Pedro Segundo, há por bem sancionar e mandar que se execute a
seguinte Resolução da Assembléia Geral Legislativa, tomada sobre outra do
Conselho Geral da Província de Goiás:
Art. 1º - Fica
ereto em vila o arraial do Bonfim, conservando o mesmo nome, e possuindo uma
Câmara Municipal, Justiça e as mais atribuições concedidas às demais vilas do
Império.
Art. 2º - Os limites desta vila
com a de Meia Ponte são o Rio das Antas desde a cabeceira até onde dá barra no
Corumbá; com a de Santa Luzia da barra das Areias pelas covas de mandiocas até
onde dá barra no Piracanjuba; com a de Santa Cruz desde o lugar denominado
barra das Covas, pelo Rio dos Peixes abaixo até onde dá barra o Passa Quatro, e
desta barra cortando rumo direito ao Rio Meia Ponte até as cabeceiras.
Art. 3º - Ficam revogadas
quaisquer disposições em contrário.
Aureliano de Sousa e Oliveira
Coutinho, Ministro e Secretário de Estado e Negócios do Império, assim o tenha
entendido e faça executar. – Palácio do
Rio de Janeiro, em dezoito de junho de mil oitocentos e trinta e três, décimo
segundo da Independência e do Império. – Francisco de Lima e Silva – José da Costa
Carvalho – João Bráulio Muniz - Aureliano de Sousa Oliveira Coutinho. –
Transitou na Chancelaria do Império em 31 de julho de 1833 – João Carneiro de
Campos”
Nessa época, a Câmara Municipal de Bonfim prevista na Resolução acima
já estava em funcionamento, por iniciativa e permissão do Conselho Provincial,
e apresentava a seguinte composição: Vicente Miguel da Silva (presidente), Pe.
Antônio Tomás de Campos, Francisco de Paula Guimarães, Antônio Umbelino de
Sousa, João Luís Teixeira Brandão, Francisco Bueno de Azevedo e José Inocente
Ferreira. E como no Império a função executiva era desempenhada pelo chefe do
Legislativo, foi Vicente Miguel da Silva o primeiro dirigente da comunidade, o
que hoje seria o primeiro Prefeito.
O termo Bonfim foi usado
oficialmente pela primeira vez na Resolução do Conselho Administrativo de
Goiás, datada de 2 de abril de 1833. Outras expressões equivalentes como
“Capela (ou Arraial) do Senhor do Bom Fim”, “Vila do Bonfim”, ou simplesmente
“Bonfim”, vieram sendo usadas até 1943, quando, por força do Decreto-lei nº
8.305, de 31 de dezembro de 1943, o nome foi alterado para “Silvânia”, em
homenagem ao patriarca Vicente Miguel da SILVA, o consolidador do Município, e
seus descendentes.
4. Os ideais que levaram à emancipação
Em São Miguel do Passa Quatro, os
ideais da emancipação já vinham há muito tempo perseguindo as pessoas
responsáveis pelo lugar. Mas a ideia ganhou impulso maior na voz de um vereador
ilustre, Alcides Pereira de Castro, que hoje empresta seu nome a uma das
principais avenidas da cidade.
Alcides veio de Santa Cruz de Goiás
e aqui fez morada. Foi vereador em Silvânia, representando São Miguel do Passa
Quatro por duas legislaturas: a primeira de 1954 a 1958; depois, de 1962 até
1965, quando veio a falecer.
Como vereador, criou os limites do
futuro Município, os quais, mais tarde, foram aproveitados no projeto de
emancipação. Apresentou também projeto de elevação do então povoado a distrito,
não tendo, infelizmente, logrado êxito, pois devido às suas ideias
emancipadoras, alguns políticos da sede do Município já começavam a torcer o
nariz e a combater qualquer iniciativa embrionária nesse sentido.
Porém seu esforço não foi em vão.
Pouco tempo depois de sua morte o povoado de São Miguel do Passa Quatro foi
elevado a Distrito de Silvânia, por força da Lei Estadual nº 7.175, de 5 de
novembro de 1968.
Outro feito que lhe é creditado é a
construção do prédio do grupo escolar, que recebeu a denominação de Escola
Isolada Graciano José da Silva, constituído de apenas um pavilhão, onde, mais
tarde, abrigou provisoriamente a Prefeitura e a Câmara Municipal, nos primeiros
dois anos da administração municipal pioneira.
5. O projeto de emancipação
Em 1976 ingressa na política
Florípio José Elias, mais conhecido por Fefé, tendo sido eleito vereador. Os
ideais de emancipação já estavam bem mais amadurecidos junto ao povo. Cuidou
ele então de fortalecer politicamente a povoação, pensando já no
desencadeamento da luta pela independência.
E foi assim que no pleito seguinte Fefé se elegeu
Vice-Prefeito de Silvânia, com a promessa de tornar Passa Quatro independente,
apoiado pelo Deputado Estadual João Natal. O povo votou em peso, a ponto de
decidir a eleição em favor de Fefé e de seu candidato a Prefeito, Milton
Tavares Júnior (Zuquinha).
O primeiro passo rumo à criação do Município foi o
trabalho junto à população, colhendo assinaturas de um mínimo legal de 160
eleitores para a formalização do processo. E em 29 de abril de 1986 o pedido
foi protocolado na Assembleia Legislativa, recebendo o nº 589/86, de autoria do
Deputado João Natal que, frise-se, era filho de Silvânia. Merece registro
também a participação ativa que teve o Deputado Estadual José Roriz dando
continuidade ao processo, a pedido de João Natal e de Fefé.
Em 15 de novembro de 1987 o povo foi consultado sobre
a emancipação através de Plebiscito. A esmagadora maioria de 619 votos “SIM”
contra apenas 9 votos “NÃO” deu a vitória à criação do Município.
Aprovado o projeto pela Assembleia Legislativa e
transformado em lei pela sanção do Governador do Estado, em solenidade
realizada no Centro Administrativo em Goiânia, no dia 9 de janeiro de 1988,
ficou criado o Município de São Miguel do Passa Quatro através da Lei nº
10.432.
Na solenidade da assinatura da lei (sanção
governamental), estavam presentes Florípio José Elias e o jovem João Batista
Rodrigues Pereira, ambos representando a população do novo Município.
No episódio da caminhada para a
formalização do projeto emancipatório, há um fato que merece registro. É que a
lei exigia como requisito a existência de um mínimo de 200 casas e 1000 eleitores,
para dar início ao processo. Mas a quantidade de casas existentes era
insuficiente. Diante do impasse, foi necessária a incorporação das casas das
chácaras da redondeza. Assim, satisfeita a exigência da lei, a documentação foi
entregue nas mãos do deputado João Natal. Consistia o processo na solicitação
de autorização para a realização de um plebiscito, onde restaria comprovado o
desejo do povo de tornar-se autônomo e caminhar com suas próprias
pernas, ter suas autoridades municipais e arrecadação próprias.
6. Por que a denominação São Miguel do
Passa Quatro?
A Lei
nº10.432/1988 determina que o Município criado deverá “ter como sede o Distrito
com o título de São Miguel do Passa Quatro”.
A pergunta que muita gente faz é com
relação ao estranho nome “Passa Quatro”. Inclusive o projeto inicial de emancipação
trazia o nome São Miguel do Bonfim, o que até certo ponto era justificável por
causa da cidade-mãe, Silvânia, antiga Bonfim. Ocorreu, porém, que o povo não
quis aceitar a mudança do topônimo, motivo pelo qual, no último momento, a
denominação que inicialmente constava do projeto foi substituída para dar lugar
ao já popularmente conhecido São Miguel do Passa Quatro.
Não se sabe ao certo qual a origem de tal denominação.
No entanto, conseguiu-se até aqui apurar que, no passado, aquele local era um
dos itinerários (não havia caminho) para transporte de mercadorias do Porto de
Corumbá, na jurisdição de Santa Cruz, para Vila Boa, por meio de carro de bois.
Como a viagem era longa, os carreiros preferiam fazer o caminho sempre em grupo
constituído de vários carros de bois, pelo princípio da solidariedade, já que
aquele meio de transporte oferecia altas dificuldades para o carreiro, como
quebra de canzil, de canga, apodrecimento das correias, acidente com os
próprios bois etc. Numa dessas viagens, nem todos os carros de bois puderam
atravessar o ribeirão por causa de uma enchente de altas proporções. Apenas
quatro conseguiram a travessia.
Esse acontecimento ficou como
referência. Toda vez que alguém se referia ao fato, ou àquele local, ou ainda
ao ribeirão, dizia: “É lá onde passou quatro”. Com o uso, a expressão foi-se
degenerando para “passa quatro”, que passou a ser o nome do rio: “Rio Passa Quatro.”
Percebe-se que “São Miguel do Passa
Quatro” é um nome formado pelo processo de justaposição, consequente de duas
histórias que se fundiram: uma, a mais antiga, trata do uso da expressão “Passa
Quatro”, que denominou o ribeirão; a outra, do surgimento da povoação em louvor
a São Miguel e que teve como referência o rio mencionado.
Com relação à primeira história narrada, envolvendo as possíveis
viagens de carros de bois e o nome “Passa Quatro”, é oportuno fazer algumas
considerações. Aceitando a versão de Henrique Silva, avalizada pelo historiador
Humberto Crispim Borges na obra História de Silvânia, de que os fundadores de
Bonfim são procedentes de Santa Cruz; considerando que fazia parte do
itinerário percorrido entre uma localidade e outra o contorno da cabeceira do
Rio Preto, tendo obrigatoriamente de atravessar o Ribeirão Passa Quatro, o
mesmo feito muito mais tarde, já em 1939, por Sêneca Lobo, o Bispo Dom Emmanuel
e o Prefeito de Bonfim; considerando ainda que desde o século XVIII o veio
abastecedor do comércio de Goiás, com produtos vindos de São Paulo, era o Porto
do Rio Corumbá, nas proximidades de Santa Cruz - forçoso é concluir que a história contada
sobre a denominação “Passa Quatro”, embora destituída de qualquer registro, não
está descartada de ser verdadeira, podendo os eventuais carreiros solidários
serem originários tanto de Vila Boa quanto de Bonfim. E o provável local do
acontecimento poderá ter sido a cabeceira do Rio Passa Quatro, onde
carinhosamente chamamos hoje de Passaquatinho.
E mais, se verdadeira tal narrativa,
provavelmente o fato aconteceu no final do século XVIII ou início do século
XIX, podendo ter coincidência, quem sabe, com a própria origem do arraial do
Bonfim, quando o sucesso da mineração forçava um intercâmbio mais frequente e
ativo entre os arraiais e as vilas.
Para sustentar essa versão, socorre-se de dois
expedientes: um, é o reconhecimento oficial da existência do Rio Passa Quatro,
na Resolução da Assembleia Geral Legislativa da Regência do Imperador D. Pedro
II, datada de 31 de julho de 1833, erigindo em vila o arraial de Bonfim e
fixando-lhe os limites “... pelo Rio dos Peixes abaixo até onde dá barra o
Passa Quatro...”; outro, é o fato de o ilibado escrivão Vicente de Paulo
Gustavo Lobo (Vivim), titular do cartório de família de Silvânia, ter-me assegurado
ser de seu conhecimento o uso do nome “Passa Quatro” em documento datado do ano
de 1810.
Tal
versão, no entanto, foi rechaçada por Solon Pereira de Castro, em brilhante
trabalho monográfico[2] intitulado
“Religiosidade Criadora: um estudo sobre a formação do espaço urbano em Aureliópolis,
Gameleira e São Miguel do passa Quatro 1906-1931”
Após transcrição de
relato do viajante Francês Auguste de Saint-Hilaire, em seu livro Viagem à
Província de Goiás, e de outro viajante, o austríaco Johann Emanuel Pohl, em
seu livro Viagem ao Interior do Brasil, ambas as narrações sobre o caminho Bonfim
a Caldas Novas, conclui o historiador:
“A região ainda praticamente desabitada no início do século dezenove,
mas o ribeirão já era conhecido como Passa Quatro, isso comprova o equívoco do
memorialista Oliveira que atribui o nome a uma suposta passagem de carros de boi em uma ponte. Em 1819 existiam
pouquíssimas pontes em Goiás e as estradas
para carros de boi nem mesmo existiam”[3]
Contudo, em que pese a competência do autor (de
família tradicional de SMPQ) e do significativo trabalho que fez vir à lume,
entendemos que a versão apresentada nesta singela obra não sofreu abalo nenhum
e por isso deve ser mantida. É que o crítico sustenta a sua discordância atribuindo-nos
a autoria de informações que não prestamos e que não foram mencionadas no texto
tido como equivocado. Veja-se:
“suposta passagem de carros de boi em uma ponte”. Ora, em momento algum se falou em ponte, no livro, mas, sim, em
travessia: Numa
dessas viagens, nem todos os carros de bois puderam atravessar o ribeirão por
causa de uma enchente de altas proporções. Apenas quatro conseguiram a travessia.
“e as estradas para carros de boi nem mesmo existiam”. Da mesma forma, o texto criticado
não menciona a palavra “estrada”, tendo se servido da expressão “itinerário”,
que, segundo os dicionaristas, significa apenas o roteiro a ser seguido: “no passado,
aquele local era um dos itinerários (não havia caminho) para transporte de mercadorias
do Porto de Corumbá”.
7. O nome “Passa Quatro” está grafado de
forma correta?
Certo dia, alguém mais zeloso pelo bom uso do
vernáculo, comentou comigo sobre o emprego correto do nome “passa quatro”
frente às normas gramaticais da Língua Portuguesa.
- Não seria “passam quatro”? -
questionou-me o gramático.
- Seria e não seria –
respondi, incontinenti, pois antes já havia feito a mesma indagação a mim
mesmo. Pela letra da gramática seria “passam quatro”, visto que o sujeito
“quatro” está no plural, o que forçosamente levaria o verbo “passa” também para
o plural, ficando “passam”, pois a colocação direta da frase é “Quatro passam”.
Porém, levando-se em conta que a expressão fora concebida assim como se
apresenta, ou seja, “passa quatro”, e mesmo em respeito à tradição e aos
costumes das seguidas gerações locais e principalmente porque foi oficializada
dessa maneira na lei de criação (Lei nº 10.432/88), passou o nome “Passa
Quatro” a ser neologismo, portanto correto e perfeitamente aceito pela gramática.
É como alguém que recebeu o nome de Antônio e na hora do registro no
cartório deixou consignar-se Antonio, sem o acento circunflexo: deverá usar
para o resto da vida o nome tal como consta do assento de nascimento, o qual, a
partir do registro, passou a ser o correto para ele.
Entretanto, mais do que correto
seria o nome “Passaquatro”, registrado nos arquivos da Paróquia de Nosso Senhor
do Bonfim, e que deveria ter sido aproveitado no projeto de emancipação. O topônimo
então seria “São Miguel do Passaquatro”.
[2] Monografia
apresentada como requisito para a obtenção do título de especialista ao
Programa de Pós-Graduação Lato-sensu
do Departamento de História da Universidade Federal de Goiás.
[3] Negritamos.
Capítulo
II
O SURGIMENTO DA POVOAÇÃO
1. Como vivia o povo de Bonfim, segundo
Sêneca Lobo
Antes de se transformar em Silvânia, ato que
aconteceu em 1943 e que na verdade não foi mais do que uma simples mudança de
nome, a Árvore Bonfinense já se projetava a passos largos rumo ao progresso, em
que pese dela terem sido retirados vários preciosos galhos, que floresceram por
conta própria e que receberam denominações diferentes, como Vianópolis,
Leopoldo de Bulhões, Bonfinópolis, São Miguel do Passa Quatro e Gameleira de
Goiás.
No seu excelente livro
Bonfim de Goiás – minha terra e minha gente, editado em 1983, no episódio “O regresso
à casa mãe”, José Sêneca Lobo narra a vida do povo bonfinense nos primeiros
vinte e cinco anos do século XX, fato que nos interessa sobremaneira, para
melhor conhecermos a nossa origem, posto que justamente nessa época que a
povoação erigida em louvor a São Miguel Arcanjo começou a ser formada, conforme
se verá adiante.
Conta
o saudoso historiador que os meninos de sua época usavam camisola até os nove,
dez anos de idade. Depois, os que podiam comprar roupa, usavam calças. As
residências não possuíam instalação de água, de luz ou sanitária. A iluminação
caseira era com velas de sebo, feitas em casa. Isto na cidade, porque na roça se usava
candeia, mantida com azeite de mamona. Os banhos eram de bacia, durante a
semana; aos sábados os homens iam ao córrego para o banho completo. As casas
dos mais ricos eram assoalhadas e as demais eram de terra batida. O primeiro
rádio chegou a Bonfim em 1924 ou 1925 e, para ser ouvido, era preciso colocar
fones individuais no ouvido de cada ouvinte.
A maioria da população era mista, meio
urbana, meio rural; quase todos tinham suas lavouras, razão pela qual praticamente
ninguém comprava arroz, feijão, toucinho e muito menos frutas e verduras. O
açúcar era produzido nas fazendas, em engenhos de madeira. As casas de comércio
vendiam apenas bebidas, sal e alguma coisa enlatada, como sardinha, cocada,
etc.
Para
se vestirem as pessoas plantavam o algodão, que era escaroçado, fiado e tecido,
e com o qual se fabricavam calças e camisas de homens e cobertas de todas as
cores, algumas de desenhos maravilhosos. Os meios de transporte eram o carro de
bois, os cargueiros e o cavalo.
A
população não necessitava de dinheiro em circulação. Não
havia bancos. O primeiro a instalar-se no Estado de Goiás foi o Banco
Hipotecário e Agrícola do Estado de Minas Gerais, em Vianópolis, no ano de
1926. As notícias de São Paulo e Rio de Janeiro chegavam de mês em mês, pelos
jornais, trazidos pelos correios, no lombo de burros. Para passar um telegrama,
enviava-se um cavaleiro a Corumbá de Goiás, distante mais de oitenta
quilômetros. Pelo ano de 1925 o correio passou a ser semanal, em Bonfim, o que
não deixou de ser um progresso muito grande na época.
Como divertimento os pagodes eram
freqüentes tanto na roça quanto na cidade, animados por acordeom, violão e
pandeiro, e regados por uma boa pinga de engenho. Para maior animação dos festejos
usavam-se tiros de roqueira, alcabuzes e clavina, alimentados com pólvora preta
de fabricação caseira.
2. O
desbravamento da Região do Passa Quatro
Naquele tempo, toda a região que abrangia a Água Vermelha, Aborrecido,
Gamela, Passa Quatro, Rio dos Bois, Matoso era coberta por matas virgens,
cerrados fechados e campos limpos, e bichos silvestres. Havia pouca gente,
distribuída por algumas fazendas já estabelecidas. O único trabalho existente
era o desbravamento do sertão, a fim de abrir lavoura e organizar fazendas, com
sede, construção de cercas de arame e pastagem para a criação de gado.
Ninguém falava ainda em erigir uma
povoação na redondeza, porém o desconforto já se fazia sentir de forma preocupante.
Debatia-se a questão da quase inexistência (e da precariedade) de bens e
serviços, medicamentos e tecidos para o consumo da população rurícola, bem como
produtos de primeira necessidade para o desenvolvimento do trabalho nas
fazendas, principalmente arame e sal, que só eram encontrados em localidades distantes.
E além do mais, a aquisição desses produtos era dificultada pela falta de
estradas e pela ineficiência dos meios de transporte. Estes, os transportes, se
faziam no lombo de cavalos ou em carros de bois. Muitas vezes, a pé.
No campo da educação, a grande
maioria dos habitantes da região era analfabeta. Não havia escola nem mesmo uma
conscientização a respeito do assunto. Aliás, o pensamento generalizado no meio
rural do início do século vinte era da inteira desnecessidade do estudo. O que
se ouvia dos patriarcas das famílias (por que também eram analfabetos) eram as
colocações: “Estudar filho pra quê? Pra tocar roça? Precisa não. Bobagem. Nem
eu nem a Maria estudou e nem por isso a gente passa fome! Fulano de tal tá
rico, não tá? Pois é, vê se ele estudou? Não foi preciso.”
A saúde era precária. Somente nas
cidades como Bonfim, Campo Formoso, Bela Vista, numa distância de beira de oito
léguas, que o socorro era buscado. A condução era o lombo do cavalo. Se se
precisasse de um médico com urgência, era necessário despachar um emissário
puxando um cavalo para proporcionar transporte ao profissional da medicina.
Isso se achasse um disponível e com coragem, e saúde, para viajar tão longe,
ida e volta. Por causa disso, as pessoas utilizavam os recursos caseiros, como
chás, banhos, emplastos, benzimentos, raízes, curandeiros.
As causas das mortes normalmente eram: morte
repentina, quando a pessoa morria de repente sem causa conhecida; morte por
sangramento, quando não se conseguia estancar o sangue da parturiente ou do
acidentado; morte de dor, quando o doente agonizava até o fim sem nada que
aplacasse os seus ais; colapso, quando o doente que sofria do coração morria de
ataque fulminante; congestão, se a morte tinha como origem algum mal do
estômago. Doenças que podiam causar a morte: crupe, nó na tripa, coqueluche,
meningite, paralisia, mordida de cobra e de cachorro doido. Doenças não
matadoras, mas muito comuns e que deixavam marcas visíveis: lombriga e papo. Em
quase toda casa havia pelo menos uma pessoa que tinha papo. Lombriga, então,
era difícil encontrar alguém que não estivesse infetado.
Uma das maiores dificuldades era
quando morria um vivente, pois o sepultamento tinha de ser feito nas cidades de
Bonfim ou Campo Formoso, distantes beira de oito léguas. A vizinha povoação de
Gameleira, hoje Cristianópolis[1], já era dotada de cemitério, mas só os protestantes
tinham acesso ao sepultamento naquele local. O pequeno arraial era fechado a
outras denominações religiosas devido ao passado recente recheado de conflitos,
envolvendo católicos e protestantes nos primeiros anos do século vinte, na
cidade de Santa Cruz de Goiás. Inclusive, esses desentendimentos foram
determinantes para o nascimento do povoado de Gameleira, local onde os
protestantes expulsos de Santa Cruz se refugiaram de medo dos católicos.
E assim o corpo do morto tinha de ser carregado nos
ombros, para receber sepultura digna em localidades distantes. Isto se o
defunto fosse de família rica, pois, fosse pobre, era enterrado debaixo de uma
árvore qualquer, sem reverência alguma, quando muito uma cruz feita a machado e
fincada no chão, para não perder o local, em completo desrespeito aos
princípios morais e legais, que não permitiam sepultamento de defunto a não ser
em cemitério público.
Sabe-se
que naquela época as pessoas falecidas eram transportadas a pé, em banguês,
resquícios ainda da escravidão, quando os escravos defuntos eram carregados em
padiolas para as sepulturas cavadas em um lugar qualquer.
3. Antecedentes da povoação erigida em
louvor a São Miguel Arcanjo
Conta-se que em 1920, mês de agosto, quando
faleceu Manoel Pio, que a idéia de construir um cemitério para servir a
comunidade começou a vingar.
Depois de matar um capado, o pretinho Manoel
Pio, muito farturento e cuidadoso, saiu para o matinho ali mesmo na porta da
sala, a fim de cortar um broto de imburuçu que seria colocado como proteção,
debaixo do porco morto. Não havia lata para guardar a gordura. O costume era
cortar o capado em pedaços, retalhar, salgar, enrolar e deixar guardado. Para o
gasto diário, a cozinheira ia desenrolando a banda e cortando-as aos poucos,
segundo a necessidade do momento.
No mato, ao dar cabo de sua obrigação, Manoel
Pio descuidou-se e bateu com o facão no joelho, fazendo um corte profundo. Deu
tétano e ele morreu logo. O velório já ia pelo fim da tarde, começo da noite. O
morto devia ser enterrado ali mesmo, então não carecia pressa, poderia esperar
o amanhecer. E além do mais, segundo a crença, não era permitido fazer enterro
à noite. Podia atrapalhar o falecido a chegar ao céu.
Contudo, os amigos e os parentes entenderam
que ele merecia coisa melhor. E assim, oito homens bastante animados partiram
resolutos, conduzindo num banguê o falecido, saindo da Água Vermelha em direção
a Campo Formoso, que era o local de destino. Pelos cálculos deveriam chegar no
outro dia, ainda pela manhã, caso não houvesse nenhum contratempo. A viagem era
longa e penosa, reservada somente a homens destemidos e fortes. E aconteceu
que, no meio do caminho, chegando ao local denominado Fazendinha, quatro dos
companheiros desistiram da viagem e da tarefa, deixando para trás os outros
quatro viventes pasmos e enraivecidos, e um morto carente de sepultura.
Aqueles outros quatro valentes carregadores prosseguiram
viagem assim mesmo. Já ofegantes, conseguiram aportar no Córrego do Pico, mais
ou menos uma légua do Batã. Para surpresa geral, o velho Militão, conhecido de
alguns do grupo, negou pouso aos visitantes, mesmo diante dos seus insistentes
e comoventes pedidos.
— Nós tamo cansado e estropiado, Militão,
antes da madrugada a gente desocupa suas terras – afirmava e pedia desolado
Felipe da Costa, na qualidade de chefe da expedição.
— Não é por nada não, Seu Felipe, é que o
povo diz que casa onde pousa defunto o dono morre assim que o defunto sai. Eu
não acredito em superstição, claro que não, mas, também, pra que arriscar!
— Seu Menino, me desculpe, mas mesmo sendo
rico e dono de muitas posses, fazenda boa e muito gado, o amigo não vai
conseguir escapar da morte um dia – retrucava, já perdendo a paciência.
— Ah isso é devera! Mas eu fico com medo
de... Pode não ser verdade o que o povo diz, mas por via das duda... Sei lá!...
O amigo hai de me entender e de me dar razão!
— Mas nós não vamos andar de a pé de noite
com o defunto mais não. Essa coisa de que o dono da casa morre se o morto
pousar nela é pura conversa fiada. Em todo o caso, com ou sem a sua permissão,
vamos levar o pretinho pro paiol, que aí livra o amigo de morrer de morte de
defunto, e resolve por hora o nosso problema. E tamos conversado!
Felipe da Costa insistiu, fechou questão e
deixou o defunto onde queria, isto é, no paiol, mesmo a contragosto do dono da
casa, sob a vigilância dos companheiros. E foi buscar recurso na fazenda de
Joaquim Serafim, ali vizinho. Lá o tratamento foi diferente: atendimento com
boas maneiras, banho quente e salmoura, pois que se achava aguado com o cansaço
da caminhada. Jantou até fartar-se e levou comida para os três amigos que
ficaram velando o morto. De lá para frente, de noite mesmo, o falecido foi
levado de carro de bois, com a ajuda de Joaquim Serafim e dos filhos Sinfrônio
e Ovídio Ferreiro. Chegaram a Campo Formoso já de tardinha.
O enterro foi muito difícil, pois o corpo já
estava bem passado, fedendo demais, e como se tratava de gente pobre, sujeita a
ser enterrada como indigente, precisava de autorização do Intendente Municipal.
E aí que foi um deus-nos-acuda. Deu o que fazer para conseguir a permissão,
porque o tal homem, sub-rogado na mais alta patente do lugar, não queria
receber ninguém. Valeu a interferência de Joaquim Serafim, que era bem
conhecido na intendência e amigo da autoridade.
Por causa desse fato, ganhou força a ideia da
construção de um cemitério que viesse atender as necessidades da população.
Felipe da Costa reuniu os fazendeiros, formando-se uma comissão, a fim de
sensibilizar o Intendente de Bonfim e os dirigentes da Igreja, de onde o lugar
era jurisdicionado, rogando-lhes que autorizassem a construção do reivindicado
campo santo. O grupo seguiu viagem de madrugada, a cavalo, e só regressou no
outro dia, com missão cumprida, mediante promessa das autoridades de atenderem
o pedido o quanto antes.
Assim foi que no início do ano de 1923 foi autorizada
a construção do cemitério. E em pouco tempo o campo santo foi construído, a custa de mutirões
levados a efeito pelos moradores da redondeza. No local se encontra hoje a Praça da Bíblia. Prova disso está nos
anais da Paróquia de N.S. do Bonfim, de Silvânia, onde se acham grafados os
seguintes dizeres:
“Cemitério de Passaquatro
Archivou-se uma Provisão de Licença para
construção e bençam de um cemitério no bairro Passaquatro desta Parochia” (6 de
fevereiro de 1923)
Contava Benedito Pires Basílio que vários
fazendeiros da época, dentre eles o próprio Benedito no tempo em que morou na
Fazenda Canavial, ajudaram as comitivas que se formavam com a finalidade de dar
sepultamento aos mortos da vizinhança, antes da construção do cemitério. Dificuldade
a toda prova. Durante o trajeto, fazia-se constante revezamento entre os
acompanhantes, para alcançar êxito no objetivo proposto. Quatro pessoas, a pé,
ombreavam o banguê e pegavam a estrada. Os cavaleiros esporeavam os cavalos e iam
esperar lá adiante, numa determinada distância suportável pelos caminhantes.
Ali, substituíam os já cansados defunteiros, entregando-lhes os cavalos. E
assim faziam até chegar ao destino.
No caso de criança falecida era diferente.
Certa vez morreu um menino de uns dois anos de idade, dali mesmo do Canavial,
vítima de doença de crupe. Crupe e angina eram as doenças que mais matavam as
crianças naquele tempo. Benedito e outros dois companheiros foram os encarregados
de dar sepultura ao corpo do garoto, na cidade de Santa Cruz, distante umas
seis léguas. O cortejo seguiu a cavalo, bem cedo, conduzindo o pequeno caixote
contendo o inocente morto. De quando em quando revezavam, na hora que os braços
sentiam cansaço. Chegaram já de tarde para desincumbir-se da missão.
4. O surgimento da povoação
Com
certeza o cemitério foi o primeiro marco para o surgimento da povoação, visto
que foi ele construído para sepultar as pessoas que morriam nas fazendas Passa
Quatro, Água Vermelha, Aborrecido e outras próximas, face à enorme distância
entre aquelas localidades e as cidades mais próximas, assim como à ineficiência
dos meios de transporte.
Ali
por volta de 1928, já pronto o cemitério cuja construção fora autorizada pela
Paróquia de N. S. do Bonfim no início de 1923, e em volta dele algumas
pouquíssimas casas, os fazendeiros da redondeza decidiram levantar ali uma
povoação em louvor a São Miguel Arcanjo. E a referência que se dava à povoação
já era o Rio Passa Quatro, razão pela qual, com o uso, o povoado passou a ser
denominado pelo povo como “São Miguel do Passa Quatro”.
Diz-se ainda que Felipe
Luiz de Carvalho, mais conhecido na época por Felipe da Costa, e sua mulher,
dona Antônia Pinto de Carvalho (Dona Antoninha), ambos já falecidos, teriam
adquirido as terras onde hoje se acha a cidade, doando-as à Igreja, para então
erguer-se o povoado. Porém a aquisição teria sido apenas verbal e somente cerca
de dez anos depois se cogitou de providenciar a documentação. Foi então lavrada
uma escritura em manuscrito e a título particular, assinada pelas partes, em
Goiânia-GO, no dia 19 de agosto de 1938, e levada a registro no cartório imobiliário
de Silvânia no mês seguinte.
Dados
constantes da certidão de registro: número, 4.201; denominação, Fazenda Passa Quatro,
Mun. de Silvânia-GO; título de transmissão, Doação; adquirente, Diocese de
Goiaz, representada pelo Exmº Sr. Arcebispo Dom Emmanuel Gomes de Oliveira;
transmitentes, Amélio Rodrigues de Morais e sua mulher, dona Ludovina Ferreira
de Morais; características e confrontações: “Uma parte de terras, dividida,
contendo 1 (um) alqueire de campo e 1 (um) alqueire de cultura, situada na
Fazenda Passa Quatro, deste termo, confrontando com terras pertencentes a
Antônio Francisco, João Antônio de Carvalho, herdeiros de Felipe Luiz de
Carvalho, pelo córrego das Vacas, com a Fazenda Alvorada, de Tobias Ferreira e
outros; havida por permuta com João Militão de Lima e outros, por escritura
pública. Consta mais o título que no terreno acima descrito já existe um
pequeno cemitério com capela, devendo-se formar nesse terreno o Patrimônio de
São Miguel.
Pelos
documentos arquivados na Paróquia de N.S. do Bonfim, em Silvânia-GO, na data de
29 de setembro de 1939, quando o Patrimônio foi oficialmente inaugurado com a
primeira missa, a povoação já contava com umas vinte casas.
5. As referências de Sêneca Lobo
Todas essas informações se encaixam com justeza,
quando se constata o registro feito por José Sêneca Lobo, em sua obra “Bonfim
de Goiás, Minha Terra e Minha Gente” em
que o autor, na condição de emérito
historiador e servindo-se de suas experiências como Tabelião em Bonfim, conta a
história de uma viagem que fez, ao povoado nascente, a qual, pela importância
que representa no contexto da história que nos propusemos a contar, pedimos
autorização para transcrever.
“CEMITÉRIO DO
PASSA QUATRO
Ali pelo ano de 1939 o povoado e
distrito de Bonfim, chamado hoje São Miguel do Passa Quatro, era constituído
apenas do cemitério e algumas casinhas ao seu redor.
O Cemitério havia sido construído
há muito tempo para sepultamento dos habitantes das fazendas Passa Quatro, Água
Vermelha, Aborrecido e outras próximas, em virtude da grande distância entre
aquele bairro e a cidade de Bonfim, ou mesmo a de Cristianópolis. Era um
problema sério o transporte de defuntos naqueles tempos - por meio de redes,
cobertas ou lençóis amarrados num varal - que eram ombreados por duas pessoas,
acompanhadas de turma de cavaleiros, fazendo-se o revezamento constante dos
carregadores, dado o peso e a pressa da marcha, realizada geralmente durante a
noite para aproveitar a temperatura. Com o sol quente durante o dia, era
praticamente impossível de se realizar a marcha, não só do ponto de vista do
cansaço do povo como principalmente pela rápida deterioração do cadáver.
No ano de 1939
o Guilherme Veloso Pereira, proprietário de um sítio próximo daquele local,
resolveu de comum acordo com os fazendeiros locais promover uma festa com a
celebração de missa campal no cemitério e outras promoções. Para isso, convidou
o Arcebispo de Bonfim, Dom Emmanuel Gomes de Oliveira, o Prefeito Municipal,
Dr. Alarico Gonzaga Jaime e outras pessoas. Os sitiantes sempre aproveitavam
estes ajuntamentos para acertarem seus problemas de terras, compras, vendas,
procurações para inventários etc., pelo que o tabelião Sêneca estava sempre
presente.
O meu veículo de condução nesse
tempo era um fordinho, ano 1928, que eu comprara por quatro contos de réis do
Zé Cândido Louza, compra que fiz graças a um empréstimo que o Plácido de
Campos, farmacêutico local, intermediou com a Rosalina Cotrim, vendera bem
sucedida na cidade.
Não havia estrada de automóvel
para o Passa Quatro e o roteiro se fazia pela estrada de Bonfim a Bela Vista,
até a fazenda do Quinzinho Bonifácio, no Campo Alegre. Dali, tomava-se à
esquerda, pelos campos, aproveitando estradas carreiras antigas, rodeando a
cabeceira do Rio Preto, seguindo pelo chapadão, que era longo, plano e bonito,
até ganhar a estrada geral de cavaleiros e carros de boi, na Lagoinha, pela
qual seguia-se até o Passa Quatro.
Na ida foi tudo muito bem, porque
o Guilherme ia na frente, mostrando os desvios de cupins, buracos e outros
empecilhos. Eram três carros: o do Guilherme, o que levava o Prefeito e o
Arcebispo, e o meu, todos lotados.
No Passa Quatro, missa solene na
frente do Cemitério, discursos, promessas de rodovias até a sede, apoio ao
futuro povoado que despontava promissor, muitas escrituras e contratos que eu
lavrei, tudo encerrado com um jantar-churrasco ao ar livre.”
6. Primeira Missa. Inauguração Oficial
do Patrimônio
Embora os documentos
silenciem a respeito de maiores detalhes, tem-se que, segundo fontes seguras, na
data de 29 de setembro de 1939 foi fincada a pedra fundamental para a
construção do prédio da Igreja. Consistia em uma pequena pedra de laje, de uns
cinquenta centímetros, devendo estar localizada debaixo do piso cimentado do
antigo prédio da capela, à frente e do lado esquerdo de quem se posiciona dentro
dela e com frente para a rua.
Outra omissão do documento oficial é o cruzeiro da
praça, que também foi erguido nesse mesmo dia, para se constituir não só num
marco histórico do lugar, mas principalmente para simbolizar a fé, em
testemunho visível de que a povoação nasceu sob o signo da Cruz de Nosso Senhor
Jesus Cristo.
Segue transcrição fiel do registro existente na
Paróquia de N.S. do Bonfim, de Silvânia-GO, a respeito da festa de inauguração
do Patrimônio de São Miguel, bênção e lançamento da pedra fundamental da Igreja
de São Miguel.
“PROGRAMA DA
FESTA
Bênção Inaugural
do Patrimônio de São Miguel (cemitério).
O
Revmo. Sr. Pe. Vigário de Bonfim chegará de véspera, no dia 28 à tarde, para
reza, sermão e confissões.
No dia 29, às 7h:
Missa e comunhão geral; às 9 h: batizados;
às 13h: chegada de S. Exa. D. Emanuel Gomes de Oliveira, DD. Arcebispo de
Goiaz; às 14h: Benção do Patrimônio. Palavras de ocasião por sua Exa: às 14,30
h: Administração do Santo Crisma; às 16h:vVolta do Arcebispo e do Vigário para
Bonfim.
A propósito
dessa festa e importante inauguração do Patrimônio, fiz distribuir dias antes o
seguinte comunicado:
P A S S A Q U
A T R O
Bairro da Paróquia de B o n f i
m
29 de setembro de
1939.
Inauguração
oficial do Patrimônio; bênção e lançamento da primeira pedra da Igreja de S.
Miguel, por sua Exa., oO Sr. Arcebispo Dom Emanuel Gomes de Oliveira, servindo
de padrinhos os Exmos. Srs. Dr. Alarico G. Jaeme, DD. Prefeito Municipal, Sr.
Guilherme Veloso Pereira e srs. Tobias Evangelista Ferreira.
COMISSÃO
ENCARREGADA DA CONSTRUÇÃO DA IGREJA DE S. M I G U E L
Corpo
diretivo: Snr. Guilherme Veloso Pereira, Tobias Evangelista Ferreira, Chico
Domingos, Josias Saturnino Dias, José Teófilo, Benedito de Carvalho, Joaquim
Vieira Machado, Joaquim Miguel. E os Srs.: Aurélio Rodrigues de Morais - Manuel
do Pocidônio - Sebastião Bina - Cipriano Domingos - José Mariano - Joaquim
Francisco - Antonio Francisco - Manuel Mateus - Joaquim Mateus - João Antônio -
José Balbino - João Balbino - Antônio Marques - Manuel Ferreira de Assis
(Neneco) - Manoel Adolfo Camenacho - Sebastião Tobias - Alonso Romão - José
Pires - Vicente Estevão - Perciliano Avelino de Godói - Deodoro Luiz Brandão -
Sanches Nepomuceno Pereira - Joaquim dos Santos - Antônio Rosa - Juventino
Paulino - Gersino Lelis - Manuel Luiz de Carvalho - Manuel Bento de Carvalho -
João Militão de Lima - Manoel Verônica Lima.
Nomeando esta
comissão, confio plenamente na eficiência ativa e generosa contribuição dos
seus membros, e espero poder inaugurar a Igreja de S. Miguel no dia 29 de setembro
do próximo ano de 1940.
Bonfim, 18 de
setembro de 1939.
Pe. Pedro Pinto Ferreira
Vigário.
A festa foi
muito concorrida, animada e piedosa. Estiveram presentes o exmo. Sr. Arcebispo,
Dom Emanuel Gomes de Oliveira, e o DD. Prefeito de Bonfim, Dr. Alarico F.
Jaeme, os quais tiveram recepção condigna,
festiva e barulhenta.
A bênção e inauguração da Igreja foi,
por assim dizer, o começo oficial do Patrimônio, Povoado, ou mesmo, futura
cidade de S. Miguel.
Ajudou
muito nessa iniciativa o sr. Guilherme Veloso Pereira, fazendeiro do lugar;
proficiente engenheiro agrônomo, traçou ele o plano urbanístico de S. Miguel.
Nesse dia da inauguração já se via o traçado das ruas, contando-se ao todo umas
vinte casas. Devo também destacar a cooperação eficiente dos srs. Moisés Roriz,
de Vianópolis, Chico Domingos e Tobias Ferreira, moradores do lugar”.
[1] Na edição anterior,
arrolamos Cristianópolis como local onde os mortos podiam ser sepultados (p.
37). No entanto, pesquisando melhor o assunto, mormente depois de escrever a
história daquela cidade, com o título de “Cristianópolis, uma cidade que nasceu
da fé”, fomos forçados a mudar o contexto para adequá-lo aos moldes da
informação precisa e verdadeira.
Capítulo III
O PATRIMÔNIO DE SÃO MIGUEL,
SUA GENTE, SEUS USOS E COSTUMES
1. As diligências de Sêneca Lobo
De outras referências feitas por
Sêneca, na obra citada, quando cumpria diligências de ofício, e que muito
enriquecem os nossos conhecimentos a respeito de São Miguel do Passa Quatro,
onde ele fala de gente da época, dos feitos, dos lugares, da qualidade das
terras etc., transcrevemos alguns trechos configurados nos seguintes episódios:
Diligência ao Passa Quatro e O Espigão Mestre.
“DILIGÊNCIA AO
PASSA QUATRO
Calixto
Joaquim de Carvalho era um dos fazendeiros bem conceituados, considerado um dos
patriarcas da família Carvalho, largamente difundida pela região do Buriti do
Passa Quatro, na zona sul da velha cidade de Bonfim.
Essa
zona limitava-se com os municípios de Santa Cruz, posteriormente com Pires do
Rio, Cristianópolis e Bela Vista de Goiás.
Região das mais desenvolvidas do
município de Bonfim, pela fertilidade de suas terras, elevada percentagem de
culturas de primeira, sobre campos cerrados, também considerados ótimos em
pastagens e madeiras, como vinhático e outras, próprias para cercas de arame.
Abrangia as fazendas Água
Vermelha, Aborrecido, Tombador, Guarirobal, Tamboril e o Passa Quatro, esta a
maior de todas.
As minhas primeiras relações com
essa região se fizeram através do patriarca já nomeado, em consequência da
minha função de tabelião, aí pelo ano de 1934/35, quando atendi ao seu primeiro
chamado para lavratura de escrituras de compra e venda e procurações para
inventários”
Esse
fazendeiro mencionado por Sêneca, de nome Calixto Joaquim de Carvalho, acabou
mais tarde tendo dois netos diretamente envolvidos na primeira administração
municipal: Aparecida Pires de Oliveira (Cotinha), que foi a primeira Primeira-Dama,
e Valdivino Inácio de Carvalho, um dos nove primeiros vereadores.
“O ESPIGÃO
MESTRE
A Fazenda Água Vermelha, do
Município de Bonfim, na sua zona sul, teve e ainda tem, destacado papel na
economia municipal, pelas suas características e qualidades das terras.
Ali residiram e ainda residem
fazendeiros com importantes ações na comunidade, pelo progresso que trouxeram à
região e pelo concurso ao desenvolvimento geral do município. O Candinho Leão
tinha uma fazenda boa, à beira do Ribeirão Água Vermelha, dotada de boas
instalações para aquele tempo, bons currais, engenho de cana, serraria de madeiras
etc.
No ano de 1927, logo que fui
nomeado escrevente de cartório, participei de um trabalho do Dr. Álvaro Pacca,
na divisão da fazenda Passa Quatro, requerida por Moisés Joaquim de Carvalho.
Em julho daquele ano,
empreendemos a viagem da sede municipal até a fazenda, mas, para alcançá-la em
automóveis, tivemos que dar a volta por Bela Vista e, dali, pela estrada da
Fazenda Arapuca, de propriedade de Aurélio Rodrigues de Morais que, mais tarde,
viria ser meu sogro.
É que não havia rodovias
municipais naquele tempo, mas somente as de ligações entre algumas cidades aqui
do sul do Estado. No norte, então, é que nada existia parecido com estradas de
automóvel.
Na Fazenda Passa Quatro, ficamos
dezoito longos dias, para concluir a entrega dos quinhões aos condôminos, dado
o número elevado dos mesmos. Hospedados na casa do promovente já citado, de acomodações
precárias, toda aquela gente: Juiz de Direito, Promotor de Justiça, Advogado,
Arbitradores, Escrivães, Oficial de Justiça, além do agrimensor e seu
auxiliar”.
2. Proprietários
rurais no ano de 1920, segundo dados do recenseamento do Brasil
Seguem-se
número de ordem, nome do proprietário e a denominação da propriedade:
01- Joaquim Moura - Faz. Rio Preto
02- Dionísio Vieira da Mota - Faz.
Rio Preto
03 - Francisco Lourenço Moreira - Faz.
Rio Preto
04- Antônio
Vieira da Mota - Faz. Rio Preto
05- José Bento
de Carvalho - Faz. Rio Preto
06- Joaquim
Vieira - Faz. Buriti
07- José
Joaquim de Carvalho - Faz. Buriti
08- Manoel
Bento de Carvalho - Faz. Buriti
09- João
Anastácio - Faz. Buriti
10- Francisco
de Assis Leite - Faz. Buriti
11- José
Crispim Xavier - Faz. Água Vermelha
12- Dionísia
Luísa - Faz. Água Vermelha
13- Joaquim
Romão - Faz. Aborrecido
14- Vitorino
Ribeiro - Faz. Aborrecido
15- Alexandre
de Assis Leite - Faz. Passa Quatro
16- José
Lourenço Xavier - Faz. Passa Quatro
17- Francisco
da C. Almeida - Faz. Passa Quatro
18- Pedro L.
de Aleluia - Faz. Passa Quatro
19- Pedro B.
de Alcântara - Faz. Passa Quatro
20- Graciano
J. Cunha - Faz. Passa Quatro
21- Cesário G.
Cunha - Faz. Passa Quatro
22- Manoel P.
Gonçalves - Faz. Passa Quatro
23- Joaquim F.
da Aleluia - Faz. Passa Quatro
24- Manoel da
Costa Brandão - Faz. Passa Quatro
25- Modesto C.
da Cunha - Faz. Passa Quatro
26- João
Militão de Sousa - Faz. Rio dos Bois
27- Adelôncio
Batista - Faz. Rio dos Bois
3. Moradores do Patrimônio na década de
1950
A
primeira casa construída em Passa Quatro foi a da Marianinha, feita por Guilherme
Veloso; a segunda foi erguida por Antônio Rosa e hoje pertence a Miguel Tobias.
Otacílio
Batista foi quem levou o primeiro automóvel para a povoação: era um “Jeep”. A
primeira bicicleta foi levada pelo Israel da Costa, procedente da cidade de
Goiás.
Segue
abaixo, em ordem alfabética, a relação das pessoas que residiram em São Miguel
do Passa Quatro, no decêndio 1950/1960:
- Abel de
Souza (Belo), a irmã Maria Piedade, e os filhos Francisco de Souza
(Chiquito, foi vereador) e Aparecida
- Agenor
Fernandes Lemos e dona Otília, pais de Valter (Telo ou Telinho) e Telma
(Titinha)
- Alexandre
e dona Bárbara, pais de Geralda, Pedro Leite, Antônio Leite, João Leite
- Almiro e
Romana, pais de Lili, Cota, Jair, Geraldina
- Antonio
Cazuza de Siqueira e dona Maria Alves, pais de Maria das Dores, Zélia,
Deodoro, Luiz, Maura, João
- Arcênio
Ribeiro (Senito) e Tereza, pais de Ana, Pedro, Maria Cristina, Joaquim,
Olívia, João, Paulo, Flávio, Flaviana
- Benedita
Elias, mãe de Maria Elias (que era mãe de Dito Elias, Antônia, Aparecida,
Maria Estréia), Ana Elias (que era mãe de Teleta, Divino, Zezinho e
Geraldinho), Geralda Elias (que era mãe de Antônio Facão, Divino e
Ditinho), João (Curiango), Sebastião Elias
- Benedito
Marra (Marrinha) e os filhos Margarida, Divino, Benedita, Lia, Ivanilde,
Tião Índio, Tereza
- Benedito
Mateus e dona Manoela, pais de José, João, Geraldo, Maria, Sebastião,
Aparecido, Emivaldo, Denivaldo, Anísia
- Carlos da
Silva Gama (Carrim) e dona Nega, pais de Maria Abadia, Clara e Nilson
- Carolina
Fernandes e Maria José Fernandes
- Custódio
da Carolina e dona Vanda, pais de Altair e Menezilda
- Custódio
Jacinto Lemos e dona Maria Antônia, pais de Sebastião (Sação) e Ilda
- Dionísio
e dona Manoela, pais de Valdivino (Negrim), João (Bazé), Benvinda,
Francisco, José, Sebastião, Maria, Antônio
- Dona
Generosa e os filhos Sossó, Noêmia, Eva, Tuca
- Dona Rita
e os filhos: Leonel e Ditim Chaga.
- Dona
Sinhana, mãe de Geraldo, Maria, Catarina, Divina, Luzia
- Dona
Vitalina e os filhos: Valdivino, Nelson, Aparecida e Iolanda
- Emídio
Faleiro e dona Alzira, pais de Inês, Romão, Bárbara, Fiúca, Tuquinha,
Maria e Joana do Iagiba
- Família
da dona Bárbara, mãe de Levi e Fiquito
- Família
de Abel Fernandes Xavier e dona Nega, pais de Paulo Edson, Cleuza e Neuza
- Família
de Alcides Pereira de Castro e dona Otacília, pais de Silvio, Anísia,
Lourdes, Hélio, Solon, Helvécio, Terezinha, Vilma e Janete
- Família
de Artilino e Maria Augusta, pais de Antônio e Maria
- Família
de Azor e Ludovina, pais de Jeová, Quinca, Fátima, Ana Maria, Benigna,
Mariquinha, Maria Gorete, Álvaro, Miguel
- Família
de Bilico e dona Maria do Rosário, pais de Dorvalino, José, João,
Benedito, Natalina, Gasparina
- Família
de Catita: Maria da Luz (Nega Catita, casada com Carrim), Maria Rosa
(Neném Catita, casada com João Preto), Olívia Catita, Antônio Catita, José
Catita, Nego Catita, Emirene Catita...
- Família
de Érico Josué Meireles e dona Berenície, pais de Kleber, Cleone, Cleonice
e Cleide
- Família
de Evandro Vieira Machado e Ana, pais de Gilberto, Paulo César e Salete
- Família
de Francisco Tomás de Oliveira (Chiquim Meleta) e dona Flauzina, pais de
Aramísio (Santo), Maria Filomena (Bita), Colandi, Geni, Adair (Lulu),
Leila, Sebastião
- Família
de Germano e dona Ambrozina, pais de Manoel Germano
- Família
de Heitor Fernandes e dona Toca, pais de Maria do Danda, Antônio, Tereza,
Aparecida, Águida, Miguel, Vânia, João Bosco, Magninho
- Família
de Horácio Cecílio Ceciliano e dona Totó, pais de Jair, Dina, Emelície,
Geraldina, Boanerges e Rui
- Família
de Jaeme Francisco Fagundes e dona Elvira, pais de Valter, Ataíde e
Jaeminho
- Família
de Joaquim Adriano e dona Maria, pais de Adão, Antônio, Jesus, Benedita,
Inácio, Maria e Antônia
- Família
de Joaquim Fernandes de Oliveira e dona Esmélia, pais de José Orlando,
Claudemiro, Abel, Regina, Maria Fernandes, Osvaldo (Vadim) e Berenície
- Família
de Joaquim Luiz e Natalina, pais de Antônio, Donizete, Ondina, Maria das
Graças, Londina, Manoel, José, Cleolúcia
- Família
de José Borges da Silva e dona Neném, pais de Coldeci e Maria Venina
- Família
de José Pereira de Castro e Perciliana, pais de Sebastião, Afonso, Pedro,
Zezico, Maria do Felismino, Ana, Tonica, Terezinha, Isabel
- Família
de Júlio Teles e Regina, e os filhos Ilton, Aparecida, Ivone, Domingos,
José Antônio, Vera
- Família
de Lino José de Carvalho e dona Maria, pais de Mário e Maria
- Família
de Manoel Marçal e dona Nega Marçal, pais de Antônio, Neném Marçal,
Jovita, Daniel, Elogina, Olinda e Jaeme Marçal
- Família
de Manoel Verônica Pinto e dona Maria Cândida de Jesus, pais de Jorge,
Delcides, Levi, Benedito, Geraldinho, José Verônica, Joãozinho, Senito, Maria
(mãe do Tião Preto)
- Família
de Otacílio Batista e dona Olívia, pais de João, Joaquim Afonso e Marcelo
- Família
de Saint’Clair (Sancré) e dona Nicácia, pais de Adjunio, Ernestina
(Santa), João Rodrigues (Danda), Jerônimo (Pinina), Maria dos Anjos
(Tuta), Maria Natividade (Tela), Abdom e Antônio Rodrigues (Bebé)
- Família
de Sebastião Bino e dona Dorcelina, pais de Antônio Bino, Maria e Geraldo
Bino
- Família
de Sebastião Ferreira e dona Ritinha, pais de Xamom, Iron, Fátima, Nilva,
Maísa, Edson, Elon, Idam
- Família
de Sebastião Gonçalves da Silva e dona Maria Fernandes da Silva, pais de
Elson (primeiro prefeito), Ana Maria, Ivan, Vânia, Geovando Magno, Odete e
José Antônio
- Família
do Italco e dona Candinha, pais de Washington (Vasentom), João, Mariana e
Luzia
- Família
Tavares, constituída pelos irmãos: Pedro Tavares, pai de Benedita; João Tavares, casado com dona
Rita, pais de Benedito, Luiz, Maria, Geralda e Antônia; José Tavares,
casado com dona Maria (Grossa), pais de Luzia, Maria José, Angélica e
Sebastião; Maria da Luz Tavares, casada com Antônio Sebastião de Oliveira,
pais de Ilídio, Manoel, Carlos, Sebastiana, Maria, Aparecida; Maria Isabel,
casada com Antônio Inácio, pais de Laudivino, Maria, Tereza, João,
Vanderlúcia; Luzia, casada com Juvenal, pais de João Manoel, Joaquim,
Sebastiana, Tereza, Onesma; e Geralda (Geraldona), solteira
- Firmino
Reginaldo(Cabaça) e dona Ambrósia, pais de José, Sebastião, Geraldo,
Maria, Ana, Rosângela
- Gino e os
filhos Sanches, João, José, Miguel (Lanterna), Ana, Benedita
- Hermelino
Ribeiro de Aleluia e dona Carmem, pais de Jeovando, Aparecida, Toninho,
João, Deusdete, Vitorino, Nelson
- Israel da
Costa e dona Maria, pais de Antônio, Felipe, Ézio, Inácia, Enilza, Enézia
- João
Pires de Oliveira e dona Antônia, pais de Elias, Ivo, Calixto, José,
Maria, Terezinha, Marta, Marcia, Gesner
- João
Rodrigues e dona Rosa, pais de Florentino, Estevaldo, José, Antônio, João
(hoje Frei João), Ana, Lucineide
- José
Anastácio de Carvalho (Zé João) e dona Rita, pais de Ivanides, Alípio
(Vereador) e Florípio (Fefé, Vereador e Vice-Prefeito por Silvânia)
- José
Arnaldo Batista e dona Ivani, pais de Deni, Luci, Lucivaldo, Marly, Demivaldo, Clarivaldo, Pelágio,
Clari, José Ronaldo, Derlivaldo, Derli, Kênia, Kenivaldo, Marta, Liliam,
Marlivaldo
- José
Barbosa (Barbosinha) e dona Benedita, pais de Otília, Maria e Luzia
- José da
Honora
- José
Firmino e dona Mundica, pais de Jerônimo, Miguel, Lucia, Terezinha,
Corina, Rita
- José
Paixão e dona Maria dos Anjos, pais de José Roberto, Humberto, Maria
Lúcia, Maria Terezinha
- José
Patrício de Carvalho e dona Cirila, pais de Terezinha
- José
Peixoto (Peixotinho)
- Lázaro
Marceneiro (Bem), a esposa Nenzica e as cunhadas Nenza e Nenzona
- Manoel
Luiz e dona Maria, pais de Sebastiana (Lourdes do Jair), José (Zezinho),
Manoel, Joaquim, Terezinha
- Maria
Andrade e Chicão, pais de Tereza, Maria Felipe, José
- Maria
Angélica (Ingerquinha), Conceição e Maria Escolasca
- Moisés Roriz
e Odorico
- Pedrão
(Dentista) e Maria Lucinda
- Perciliano
e dona Maricota e as netas Aurora e Luzia
- Tobias
dos Santos Silva (Tobiinha) e dona Maria Cândida, pais de Maria Aparecida
(Negrinha), Divina (Tuca), Rosita, Zulmira, Laudivino, João Miguel, Delcides
(Dê) e Maria de Fátima.
Esclarece-se
que essa relação é apenas dos moradores do povoado, sem a zona rural. Pedem-se
desculpas se porventura alguém ficou de fora da lista acima. Não foi de
propósito. A intenção era a de mencionar a todos. Eventual omissão foi em
decorrência de falta de melhores informações a respeito.
Ressalte-se também que, durante a
década de cinquenta, muitas das pessoas acima relacionadas transferiram
residência para outras localidades, ao mesmo tempo em que outras tantas
chegaram, já mais para o final do decêndio. O certo é que todas elas poderão
sentir-se orgulhosas de terem contribuído de algum modo para a edificação do
Município de São Miguel do Passa Quatro.
Portanto, o respeito e a admiração do
autor por todas essas pessoas pioneiras e benfeitoras, sem as quais certamente este
Município não existiria.
Inclusive,
foi por respeito à memória dos nossos antepassados que no início dos anos
oitenta, estando de passagem por esta cidade e constatando o desleixo das
autoridades para com o cemitério (velho), onde o mato já havia substituído os
pouquíssimos túmulos ainda existentes, e havendo no local montes de areia e
tijolos para construção de casas particulares, saí imediatamente em defesa da
preservação do nosso cemitério, onde jaz a memória da povoação pioneira.
Ameacei entrar na justiça, recorri até o
vigário, revolvi meio mundo e, finalmente, os invasores recuaram e desistiram
de erguer casas residenciais sobre as inúmeras sepulturas dos nossos parentes,
amigos, benfeitores e pioneiros de São Miguel do Passa Quatro. Do contrário,
mais uma memória da nossa cidade teria sido deletada naquela oportunidade, a
exemplo do que aconteceu, em 1998, com o nosso saudoso “Sobradinho da Praça”,
demolido criminosamente sob o argumento de que estava muito velho e “caindo”,
como se não existisse “restauração” para recuperar os valores culturais na
iminência de deterioração.
4. Os festejos
Os festejos ocorriam duas vezes por ano e constituíam-se
no maior acontecimento do lugar. No final do mês de maio ou início de junho de
cada ano, após as colheitas, realizava-se a festa em louvor a São Sebastião e
Santa Terezinha. Mas a festa tradicional, de maior movimentação, esperada por todos,
era a de São Miguel Arcanjo, padroeiro da cidade, e Nossa Senhora Aparecida, que
acontecia no fim do mês de setembro de cada ano, por causa do dia de São
Miguel, comemorado no dia 29.
Era a certeza da vinda do padre,
coisa bastante rara, e a oportunidade para o congraçamento com as pessoas da
zona rural e com os velhos conhecidos que moravam fora.
A
festa começava sempre numa quinta-feira, com a alvorada. Muitos fogos, muita
música, muito barulho, muita cachaça também. Lembro-me de uma vez que
conseguiram levar a Banda de Música de Silvânia, liderada pelo Cabo João. Foi
uma surpresa tremenda! Toda a população do Arraial levantou de madrugada para
acompanhar a Banda, ao som de dobrados excitantes e comovedores.
Quando o Ovídio Meireles foi festeiro, ele conseguiu
levar a Congada de Santa Cruz de Goiás para abrilhantar os festejos, o que foi
um feito extraordinário para a época. Os componentes da congada eram na sua
maioria de cor negra, vestidos com uma indumentária própria e à caráter,
portando instrumentos musicais constantes de sanfona (pé de bode de 8 baixos),
viola, cavaquinho, pandeiro, reco-reco e caixa surda. À frente, a rainha, com
vestimenta em grande estilo e luxo. Repertório rico, com cantigas dos escravos
e modas populares. Esse grupo alegre percorreu todas as ruas da cidade e
terminou sua participação na festa acompanhando a procissão, no final.
O sucesso foi tanto que, passada a festa, nós, os
moleques daquela época, organizamos a nossa congada particular. O Fiquito
tocava violão, eu e o Joaquim Luiz cantávamos, outros tocavam instrumentos
diversos. Todas as noites fazíamos a nossa apresentação no Largo da Igreja.
Enchia de gente. Só acabou quando decidimos cobrar ingresso. Aí o povo sumiu.
5. O leilão
das canas
Os primeiros dias de novena eram
fracos. Pouca gente, prendas baratas... Não passavam de algumas pelotas de
sabão, um saquinho de farinha, outro de polvilho, umas duas guarirobas, e só.
Sábado e domingo, no entanto, eram ótimos. O Coreto quase não cabia as doações
dos fiéis. E aí chegava a alegria da garotada: as canas! Durante o leilão o
leiloeiro de vez em quando anunciava:
“Num raleia não, meninada. No final vou gritá as cana!”
A molecada esperava ansiosa. Quando acabava de leiloar
todas as prendas, chegava finalmente o momento tão desejado pelos baixinhos.
“E chegou a hora dos menino. Óia o
montão de cana! Tem cana comum, cana argentina... Tem até cana de cavalo,
aquela dura que só menino chupa, porque tem dente bão. Vou gritá tudo de uma
vez. Só as cana caiana que não. Cana caiana faz mal pra menino, dá caganeira.
Mas cuidado pra não machucá, viu! Guarda os canivete, os quicezinho! Oh! Não
pode cortá a cana com faca não. É perigoso. Só vale quebrá no muque. E tem uma coisa: quem brigá não
leva cana não. Pode luitá à vontade, mas sem briga! Biliscá e mordê também é
proibido: vai que o companheiro enfesa e aí, ó...! Depois vai recramá que fio
de pobre não tem sorte! Xingá daqueles nome cabeludo também num convém não. Tá
muito perto da Igreja!”
E continuava:
“Tá sem lanço as cana! - insistia o
leiloeiro. Quem vai arrematá pros meninos?! Seu Joaquim é o protetor da
molecada. Quanto vale as cana, Seu Joaquim? Cinqüenta centavo! Cinquenta
centavo é pros menino chupá! Um cruzeiro os menino num vai vê nem o cheiro! Um
e cinqüenta é dos menino mesmo! Dooois cruzeiro é pro Mané Tatu chupá sozinho e
os outros ficá espiando e morrendo de inveja! Ô Sossó, sai do meio dos menino
que ocê não é menino mais não. Já tem até barba! Dooois e cinqüenta é dos
menino mesmo! Dois e... - Cuidado, menino! Sai de perto do lampeão que
senão ocê encosta nele e aí ele cai e nóis fica no escuro. -
Dooois e cinqüenta! Haja quem mais dê!
- Oh gente! Vou avisar uma
coisa: cana é só pra menino. Ocês tão
veno, tem aí uns cinqüenta capiau: uns mais crescidinho, outros rapezinho
ainda... Quando eu jogar as cana, não pode entrar gente grande na confusão não,
porque pode machucar os petitico. Marmanjo que quiser chupar cana vai prantá.
Ou então vai trabaiá e comprá... - Quanto que eu tava gritando mesmo? Ah! Dois
e cinqüenta é dos meninos! Doois e cinqüenta dou-lhe uma! Dois e cinquenta
dou-lhe duas! Dois e cinqüenta dou-lhe...três. Pode marcar pro Seu Joaquim Fernandes.”
Era o momento da farra da molecada:
“E agora eu vou jogar as cana. -
sentenciava o Bastião Ferreira. Raleia, moçada. Deixa só os moleque. As muié é
bom subir na carçada da Igreja pra ficar mais longe e num ter perigo de
machucá. Me ajude aqui, compadre Azor, esse mói de cana tá muito pesado, é cana
demais. Lá vai, meninada! Lá vai...! Lá vaiii...! Viche, só vê poeira! Cuidado
pra não machucá!”
Sebastião Ferreira era o leiloeiro
oficial. Possuidor de uma voz forte, boa dicção, educado. E apesar de não ter
tido oportunidade de estudar, era detentor de uma sabedoria acima do comum,
especialmente no que diz respeito ao domínio de massa. E era, antes de tudo, um
astuto comerciante, quando subia ao Coreto da Igreja para vender as prendas em
leilão. Ele transmitia simpatia, ao contrário de muitos leiloeiros de hoje que
querem se impor pela arrogância, pelas ofensas disfarçadas às pessoas, tornando-se
antipáticos.
6. O episódio do padre e o puteiro
O professor José Arnaldo era quem tirava o terço,
entoava os hinos em louvor aos santos festejados e preparava toda a parte
religiosa. O padre só chegava no dia da festa.
A expectativa em torno da chegada do
sacerdote era muito grande, porque se ele não viesse a festa não se realizava.
Para muitos, festa mesmo era só depois da chegada do vigário.
Certa vez o padre chegou - na data
marcada, como de costume - e de imediato ficou sabendo que a Dona Branca estava
de rancharia com seu cabaré montado. Era
verdade, mas ninguém teve a coragem de tomar a iniciativa de avisá-lo.
- Quem sabe ele nem ficava sabendo, afinal o sol
nasceu para todos. - raciocinavam as ilustres autoridades.
Ledo engano. O meio de comunicação
mais eficiente de toda cidade pequena sempre foi a futrica. Por que deveria ser
diferente naquela oportunidade? Ademais, pessoas interessadas no mexerico não
faltavam. As esposas estavam fervendo de ciúmes de seus maridos, pois a
mercadoria apresentada pela meretriz instalada na casa cedida pelo Manoel
Verônica era de excelente qualidade.
O sacerdote nem desmanchou as malas. Queria porque queria
voltar para Silvânia. E se o padre fosse embora não haveria festa. Além do mais
corria-se o risco de o lugar ser espraguejado e até mesmo excomungado.
Foi um alvoroço danado na corrutela. Os festeiros, Pedro Pereira de
Castro e Dona Maria de Lourdes Castro, ficaram aflitos diante da real possibilidade
de não haver festa. Os barraqueiros torciam e pressionavam para que a festa
prosseguisse, com medo já do prejuízo. As senhoras da cidade, tomadas pela
proteção de seus maridos, exigiam que Dona Branca fosse expulsa imediatamente.
Os homens, no entanto, diante do impasse, diplomaticamente (ou safadamente)
optavam pela negociação, em defesa da não-radicalização, porque no fundo
desejavam as duas coisas, isto é, a presença do vigário, em nome da
continuidade do evento religioso, e ao mesmo tempo a permanência das
visitantes, as “primas”, como eram chamadas as prostitutas, como garantia dos
bons divertimentos. Mesmo porque a chegada de padre e de mulheres de vida livre
no lugar eram dois acontecimentos raros. E por outro lado, havia aqueles que
defendiam a tese dos cinco pês como condição para a festa perfeita e completa:
Padre, Povo, Pinga, Puta e Polícia, ao que o Cabo João, policial responsável
pela segurança dos festejos, acrescentava mais um: pau na moleira dos bandidos!
O sacerdote, por sua vez, fechou
questão: “Ou elas ou eu!”
Coube então à Comissão da Igreja, com responsabilidade
direta na administração da Capela e indireta no bom andamento da festa, a
tarefa delicada de convencer Dona Branca a regressar à sua cidade de origem.
Fomos eu, muito jovem, quase adolescente ainda, na qualidade de secretário da
dita Comissão; o Pedro Calixto, já bastante maduro e respeitado, por ser o
tesoureiro; e o Ubaldo Vieira, fazendeiro sério e correto, que era o
presidente.
Descemos os três rua a baixo, sob os
olhares curiosos dos romeiros que se achavam bastante divididos com relação aos
objetivos da nossa empreitada. De vez em quando se ouviam alguns gracejos aqui,
outras piadinhas ali, mas conseguimos manter a pose e chegar triunfantes ao
local do crime.
Surpreendentemente fomos muito bem recebidos.
Tratava-se de pessoas educadas e simples, que entenderam perfeitamente a nossa
posição e se prontificaram a atender incontinenti as exigências que o momento
pedia. Apenas um bêbado ali escorado na porta da cozinha quis insurgir-se
contra nós, reclamando o seguinte:
- Se as comadre for embora nós vamo também, uái! Pra
mode que aí a festa acaba! Manda esse padre ir tomá ó!!!...
Porém, aquelas nobres senhoras pediram-nos desculpas e
a conversa chegou a bom termo.
7. Outras prendas do leilão
Os
outros dias da novena, como segunda e terça da semana da festa, eram também de
pouca movimentação. Quarta-feira já era melhor. O leilão era mais agitado por
causa de certas brincadeiras do Sebastião Ferreira.
Havia algumas prendas, ofertadas
dentro de envelopes, que eram chamadas de “segredo” e dessa forma eram
leiloadas. Geralmente acompanhadas de um bilhetinho com oferecimento a alguma
pessoa. E eram ali colocadas, ou pela namorada ou por algum amigo (da onça), ou
mesmo por alguém que queria apenas brincar. O bom da brincadeira era mesmo
descobrir o conteúdo do envelope e o nome de quem o subscrevia. E o Sebastião
Ferreira aprontava um salseiro em cima dessas oferendas, que acabava empurrando
a mercadoria por preço exorbitante. Mas quem queria deixar outro indivíduo
arrematar a prenda para descobrir o tal segredo que lhe era endereçado?
- E vai começar o leilão outra vez,
gente. - apregoava o Bastião Ferreira. São Miguel Arcanjo e Nossa Senhora
Aparecida que nos ai de proteger de todo mal: da inveja, das calúnia, das
briga, da bebedeira, da peste e da fome... amém!
- Eu tenho aqui uma dúzia de ovos com um bietinho. - esclarecia o
leiloeiro. Lê pra nós, compadre Azor! É pro Zé Calixto chocar e tá com lanço de
um cruzeiro. Ummm cruzeiro, o Zé Calixto vai chocar os ovos! Um e cinqüenta, o
Zé Calixto diz que ele não vai chocar, é o compadre Negrim quem vai chocar
esses danado! Dooooois cruzeiro, o compadre Negrim não quer mexer com isso não,
é o Jararaca que choca! Já pensou, Abel, ocê magricelinho desse jeito sentado
nesses ovos! Num vai tirar pinto de jeito nenhum. Doooois e cinqüenta, é pro
Otacílio Batista chocar, que ele que é rico e tem tempo pressas coisa! Trêêêis
cruzeiro é pro Abílio agachá em cima deles! Haja quem mais dê, gente! Três
cru...Quaaaatro cruzeiro é pro Vartão do Jaeme chocá lá na roçada de pasto que
ele pegou do Mané Paixão! Quaaaatro e cinqüenta é pro Antonio Catita! Ciiiinco
cruzeiro é o Faezão quem choca! Cinco cruzeiro, dou-lhe uma; cinco cruzeiro,
dou-lhe duas; cinco cruzeiro, dou-lhe...três.
8. O serviço de alto-falante do Dito
Bode
Na sexta-feira da festa chegava o
Dito Bode com seu serviço de alto-falante movido a motor diesel. Era um Deus
nos acuda. De vez em quando a rotação do tal motor baixava e o disco
desafinava. Virava só graça.
O Dito cobrava pelos oferecimentos
de música. Era sua fonte de renda, para manter aquela sua parafernália. Era o
locutor apropriado para tais momentos. Com sua voz um tanto rouca e estridente
fazia a festa da juventude, brincando com um, com outro e divertindo a todos.
-
E agora vamos ouvir “Bebendo nos Bares”, na interpretação maravilhosa de Praião
e Prainha. Essa bela música alguém oferece a alguém e esse alguém sabe quem. Se
por acaso não souber, não é problema meu. Só posso dizer que é alguém muito
apaixonado. Preste atenção!
Outra música das bastante executadas
era anunciada pelo Dito Bode:
- Ouviremos agora “Chega de Sofrer”,
na bela interpretação de Silveira e Barrinha. Essa música a letra “P” oferece
para a letra “A” com muito amor e carinho.
A procissão da festa, que saía às
dezoito horas do domingo, velas acesas, terço, ladainha, andores conduzindo as
imagens de São Miguel Arcanjo e Nossa Senhora Aparecida, organização do posicionamento
dos fiéis, tudo passava pela observação, liderança e animação microfônica do
Dito Bode. Até os fogos.
- Cuidado com os foguetes! Solta pro alto pra não cair
em cima do povo!
Na chegada da procissão, antes mesmo
do sorteio do novo festeiro, para o ano seguinte, os “Vivas”. O Dito comandava
e a multidão respondia, com fervor:
- Viva Nosso Senhor Jesus Cristo!
-
Viva!
-
Viva São Miguel Arcanjo, o padroeiro do lugar!
-
Viva!
- Viva Nossa Senhora Aparecida, nossa Mãe do Céu!
- Viva!
- Viva o padre vigário!
- Viva!
- Viva os festeiros!
- Viva!
- Viva o povo aqui reunido!
- Viva!
Todos:
Mãezinha do céu, eu não sei rezar
Eu só sei dizer, que eu quero é te
amar
Azul é teu manto e branco é teu véu
Mãezinha, eu quero te ver lá no céu.
Capítulo IV
ASPECTOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS
1. Dados sociais e econômicos do Patrimônio de São
Miguel nos anos 50
·
Barbeiros: Agenor
Fernandes Lemos (Agenorinho) e Lino José de Carvalho;
·
Benzedor:
Francisco (Chico Baiança);
·
Capadores de
porca: José Patrício de Carvalho e José Teófilo de Lima - Mais tarde: Manoel
João de Carvalho, Pedro Joaquim de Carvalho (Pedro Calixto);
·
Capela: 1 (uma);
·
Carreiros:
Carrim, Bilico, Antônio Cazuza;
·
Casas: 50 (cinquenta)
aproximadamente;
·
Cemitério: 1 (um);
·
Comerciante de
armazém de secos e molhados: Jaeme Francisco Fagundes;
·
Comerciantes de
loja de tecidos em geral: Moisés Roriz e Odorico; mais tarde, Claudemiro Fernandes
de Oliveira;
·
Contador de
causos: Germano, Manoel Germano e Valtão do Jaeme;
·
Coveiro do
cemitério: Arcênio Ribeiro (Senito);
·
Cremeiro:
Francisco de Souza (Chiquito);
·
Dentistas:
Pedrão, casado com Maria Lucinda, e Ludovico de Almeida;
·
Empreiteiro de
roçada de pasto: Valter Francisco Fagundes (Valtão do Jaeme);
·
Energia elétrica:
Não havia;
·
Farmacêutico:
Érico Josué Meirelles (Lico);
·
Ferrador de
animal: José Borges da Silva;
·
Furador e
limpador de cisterna: Arcênio Ribeiro (Senito);
·
Homeopata:
Sanches do Gino e Joaquim Luiz;
·
Padeiro: José da
Honora;
·
Parteiras: Ana
Baiança, Benedita Raimunda, Izídia Pires de Carvalho e Maria Cândida de Carvalho;
·
Pensão: Pensão da
Vitalina e Pensão da Jovita Marçal;
·
Professores:
Adonias Lemes do Prado, Dona Agite, Seu Júlio, Palmério José Borges, Dona
Vanda, José Arnaldo Batista, Dona Ivani, Dona Dalva, Dona Helena;
·
Rezador de terço:
Prof. José Arnaldo Batista;
·
Sapateiro:
Sebastião Gonçalves da Silva;
·
Tenda de Ferraria
(Ferreiro): Manoel Verônica Pinto;
·
Vendas e vendeiros
(venda, boteco): Horácio Cecílio Ceciliano e João Pires de Oliveira.
2. A vida dos habitantes do Patrimônio
Nascido a cerca de doze quilômetros distante do povoado, no ano de 1950
meus pais transferiram moradia para o tão falado Patrimônio de São Miguel. Meu
sonho era estudar e a partir dali poderia realizá-lo convenientemente. Desde então
iniciei contato direto com a vida daquela gente minha conterrânea da qual
passava a fazer parte.
Naquela
época, não devia haver mais do que umas cinquenta casas de morada no arraial,
todas construídas usando esteios de aroeira, travamento de madeira branca e
telhas comuns fabricadas em olaria dali mesmo; paredes de adobe rebocadas com
uma massa feita de uma mistura de areia fina, saibro e estrume de vaca, e, em
muitas delas, pintura à base de cal. O piso normalmente era de chão batido, raramente
ladrilhado ou cimentado.
Além
dessas edificações rústicas, apenas a capela, erguida em louvor a São Miguel Arcanjo,
e o cemitério. A escola funcionava em uma dessas casas que ficava logo abaixo
do largo. Tentou-se preservar a casa aludida para museu, mas logo após a
construção do prédio do grupo escolar, foi ela cedida a título de comodato à
Srª Benedita Elias, depois à sua filha Maria Elias e, finalmente, demolida.
Todos
eram produtores rurais. A esmagadora maioria vivia do cultivo do arroz, do
milho e do feijão. Quase todos eram meeiros ou arrendatários. Os fazendeiros,
além da sua quota-parte na meação ou arrendo, amainavam o gado leiteiro e
fabricavam o queijo caseiro, ou comercializavam o creme desnatado do leite. As
mulheres cuidavam da casa, cozinhando para peões na lavoura. Muitas fiavam o algodão
plantado nos beirais das roças de toco e teciam no tear da casa as roupas da
família, especialmente as calças que os maridos usavam no batente diário.
Os
jovens rapazes acompanhavam os pais no trabalho do campo; as moças eram
preparadas ainda na adolescência para os afazeres domésticos, ajudando a mãe.
As crianças, após o horário da escola, brincavam: as meninas tinham as bonecas
e os meninos, a bola, ou o banho de córrego, ou ainda a caça de passarinho, cada
qual com seu estilingue.
Em
noites de lua clara, havia outras diversas alternativas de brincadeiras e
passatempos coletivos, às vezes até mistos. Entretanto, para os moços e as
moças, a melhor e mais freqüente diversão eram os bailes e os pagodinhos de finais
de semana, normalmente animados por uma sanfona, um violão e um pandeiro. As
românticas serenatas eram uma constante no lugar, quase sempre regadas pela pinguinha
fornecida pelo João Pires. As festas de gala eram os pousos de folia da zona rural,
bem como os festejos em louvor ao Santo Padroeiro e aos demais santos da
devoção popular local, com queima de fogos e da fogueira, e o hasteamento do
mastro com a bandeira do santo festejado.
Pelo
tamanho do lugarejo, existiam numerosas vendas, mais do que o necessário. O consumo
de aguardente era mais que satisfatório para os vendeiros. Em conseqüência
disto, porém, desencadeavam-se incessantes entreveros que, de quando em vez,
resultavam em crimes de lesão corporal ou mesmo homicídios. Furtos, só mesmo de
galinhas, à noite, praticados por farofeiros embriagados e famintos. Adultérios
eram constantes, mas o povo não tolerava zona meretriz estabelecida no lugar. O
desvirginamento de uma donzela era comumente resolvido pelo casamento do
ofensor com a ofendida, em reparação do dano. Justiça se fazia ali mesmo,
através das pessoas mais respeitadas, as consideradas pela população como
conselheiras naturais. Só em casos extremos a polícia de Silvânia era chamada.
3. Pessoas que fizeram história em São
Miguel do Passa Quatro
Foram
muitas as pessoas que fizeram a história da povoação. Vamos destacar apenas
algumas delas, não que as outras não tenham tido papel de relevância, mas
porque estas, ou foram nossas contemporâneas, daí por que tivemos a
oportunidade de ver de perto o trabalho e a vida de cada uma, ou porque tivemos
acesso às imprescindíveis informações a respeito de suas condutas e de seus
feitos em favor de Passa Quatro.
GUILHERME VELOSO PEREIRA foi fazendeiro na região, tendo como seu principal feito os
serviços de agrimensura e topografia do Patrimônio de São Miguel, dando às
terras doadas à Diocese de Goiás o traçado de ruas, praça e localização do
cemitério e da capela de São Miguel.
O Pe.
Pedro Pinto Ferreira, vigário da Paróquia de N. S. do Bonfim, por ocasião da inauguração
oficial do Patrimônio, em 29 de setembro de 1939, nomeou a comissão encarregada
de construir a Igreja de São Miguel que foi encabeçada por Guilherme Veloso. A
seu respeito o Padre Vigário anotou a seguinte observação: “Ajudou-me muito
nessa iniciativa, o Sr. Guilherme Veloso Pereira, fazendeiro do lugar;
proficiente engenheiro agrônomo, traçou ele o plano urbanístico de S. Miguel.
Nesse dia da inauguração já se via o traçado das ruas, contando-se ao todo umas
vinte casas.”
Sobre
ele escreveu seu amigo ilustre, Sêneca Lobo:
“Faleceu
relativamente moço, acometido, como já disse, dessa chaga maligna, que ataca,
há muitos anos, o homem do campo, sujeito pelas condições de vida, às picadas
dos ‘barbeiros’, que têm seu habitat preferencial nos casebres e ranchos de
pau-a-pique muito comuns naqueles tempos, nas fazendas. Quando Guilherme
descobriu a doença de que era portador, sofreu tremendo choque, pois tinha
perfeito conhecimento da gravidade do mal e, por outro lado, amava a vida que,
naquela altura, já lhe sorria, fagueira e tranquila, graças aos ganhos
acumulados pelos trabalhos realizados.”
GRACIANO JOSÉ DA SILVA foi comerciante
e professor particular na Fazenda Passa Quatro desde o ano de 1911 até 1940,
quando se transferiu para Vianópolis, onde veio a falecer. Participou ativamente
do desenvolvimento da região com o transporte de mercadorias em geral, buscadas
no início da Estrada de Ferro Goiás, no lugar denominado Roncador.
Emprestou seu nome à única escola da povoação, que
deixou de chamar-se “Escola Isolada da Fazenda Passa Quatro”, para receber,
inicialmente, a denominação de “Grupo Escolar Graciano José da Silva”, e
posteriormente o nome de “Escola Estadual de 1º Grau Graciano José da Silva”.
Após
a emancipação, várias mudanças ocorreram na formação do novo município, na
tentativa de encontrar-se a real identificação dos característicos locais. E
uma delas foi de iniciativa da Câmara Municipal, retirando da escola local o
seu nome para emprestá-lo a uma das principais avenidas da cidade, a Av.
Perimetral, que por lei municipal passou a denominar-se Av. Graciano José da Silva.
ADONIAS LEMES DO PRADO foi quem fundou
a primeira escola em São Miguel do Passa Quatro e foi também o primeiro
professor, nos anos de 1945 a 1951. Sua residência era na própria escola e o
seu esforço para ensinar as pessoas era sincero e admirado por todos. Nasceu em
15 de novembro de 1925, em Silvânia-GO, filho de João do Prado e Dolores Mercês
Campos. Foi aluno do Ginásio Anchieta, de Silvânia, onde concluiu o curso
ginasial.
De São
Miguel do Passa Quatro, Adonias voltou para Silvânia, chamado para exercer as
funções de Inspetor Escolar e Tesoureiro da Prefeitura. Em 1957 foi Exator
Estadual e em 1959 assumiu o cargo de Prefeito Municipal, mandato que exerceu
até 1961. É sua a frase: “Nada é impossível aos homens, quando o ideal é maior
do que as divergências”, proferida na solenidade de inauguração da sede da AFFEGO,
entidade da qual era presidente.
Em
reconhecimento ao seu trabalho pioneiro no setor da Educação, tão logo ocorreu
a instalação do município a Câmara Municipal solicitou à Assembléia Legislativa
a mudança do nome da escola local, através de lei, dando à Escola Estadual de
1º Grau Graciano José da Silva o novo nome de Colégio Estadual Adonias Lemes do
Prado, no que foi prontamente atendida.
ALCIDES PEREIRA DE CASTRO foi o
primeiro a levantar a bandeira da emancipação. Foi vereador por dois mandatos:
1954/1958 e 1962/1965, quando faleceu. Nasceu no dia 19 de agosto de 1915, em
Santa Cruz. Casou-se com Otacília Maria Xavier no ano de 1941 e escolheu Passa
Quatro para morar a vida inteira. Era muito bem relacionado em todas as camadas
sociais, inclusive chamado constantemente para resolver questões pessoais e
familiares. Foi um grande conselheiro e político exemplar.
ÉRICO JOSUÉ MEIRELES (LICO), casado com
Berenície Fernandes, filha do lugar, era o farmacêutico da povoação e adjacências.
Aliás, desempenhava as funções de farmacêutico e de médico. Como não havia
médico na região, nem transporte automotor para que se pudesse adquirir
remédios com mais freqüência e transportar doentes para outros centros mais
adiantados, o Lico era chamado para atender consultas, medicar o paciente e na
maioria das vezes fabricar o remédio através de fórmulas que os laboratórios
lhe prescreviam.
Sarampo,
crupe, coqueluche, febre de garganta, gripe, dor de barriga etc. ele
diagnosticava e curava. O que lhe parecia impossível ele encaminhava para
procurar melhor recurso fora.
O
Lico foi também Vereador. Lembro-me que sua plataforma de campanha eram: saúde,
estrada e esporte. Inclusive, nos tempos áureos do futebol passaquatrense,
início da década de sessenta, o Lico era o técnico do time que ganhava de
Cristianópolis, de Piracanjuba, da Charqueada de Vianópolis e outros. Enquanto
Vereador, foi o responsável pela arborização do antigo Largo da Igreja, hoje Praça
Sebastião Gonçalves da Silva.
FLORÍPIO JOSÉ ELIAS (FEFÉ) é casado com
Maria Francelina e sempre residiu em São Miguel do Passa Quatro. Foi Vereador no
período de 1977 a 1982 e Vice-prefeito entre os anos de 1983 e 1988,
representando o povo de São Miguel do Passa Quatro na Câmara e na Prefeitura de
Silvânia, respectivamente. O seu mandato terminou em 31 de dezembro de 1988. E o
novo município foi instalado no dia seguinte, em 1º de janeiro de 1989, por
ocasião da posse dos primeiros mandatários: prefeito, vice-prefeito e
vereadores. A emancipação ocorreu por ato do Governo do Estado, publicado em 9
de janeiro de 1988.
Fefé, nome pelo qual sempre foi conhecido, era
político atuante e de grande prestígio, preocupado com o povo e com o progresso
da povoação. Sua força eleitoral era reconhecida em toda a região, posto que os
votos que levou do seu colégio eleitoral foram decisivos para eleger o Prefeito
de Silvânia, chapa da qual fazia parte como candidato a Vice-prefeito. Sem isso,
com certeza eles não teriam sido eleitos.
Como político, Fefé prestou
relevantes serviços à comunidade, preocupado especialmente com a educação. Na
sua gestão como representante de seu povo, batalhou e conseguiu o transporte
escolar desde a povoação até Cristianópolis, para que os jovens pudessem dar
continuidade aos seus estudos, cursando o 2º grau. Isso deu base para que ele
próprio, logo depois, com a influência do cargo de Vice-prefeito, conseguisse
implantar na pequena cidade o curso de 2º grau, tão sonhado pelos moradores. Isto
no ano de 1987.
A questão do
transporte escolar tem relevância histórica, uma
vez que os alunos que concluíram o 2º grau em Cristianópolis, no final do ano
de 1988, foram aproveitados na administração pioneira que se iniciou no ano
seguinte.
Fefé conseguiu ainda com o Prefeito de Silvânia o
calçamento da Praça da Igreja, hoje Praça Sebastião Gonçalves da Silva, o que
foi considerado um feito de alta proporção, com grande repercussão na época.
A emancipação de São Miguel do Passa Quatro foi, sem
dúvida, o seu principal trabalho. Se de um lado o Deputado João Natal comprou a
ideia, apresentou o projeto na Assembleia Legislativa e o defendeu até a sua aprovação,
de outro lado, nas bases foi Fefé quem promoveu o convencimento dos habitantes
e colheu as assinaturas necessárias para a sustentação legal do processo
emancipatório.
Por tudo isso, Florípio José Elias e o Deputado João
Natal são merecedores do título e das honrarias de emancipadores de São Miguel
do Passa Quatro.
JOSÉ ARNALDO
BATISTA veio para Passa Quatro no ano
de 1948, como balconista da loja de tecidos de Moisés Roriz. Trabalhou o tempo
suficiente para logo montar o seu próprio comércio.
Casou-se com Ivani
das Chagas, a companheira inseparável que lhe deu 16 filhos. Juntos, passaram
a ser os responsáveis pela educação dos jovens do lugarejo. Durante vinte e
cinco anos tomaram conta da única escola, ensinando de maneira incansável e com
competência, desde o bê-á-bá até o quarto ano primário.
Tive
o prazer de ser seu aluno. E mais tarde, seu colega de magistério, na mesma
escola. E são inúmeras as pessoas das gerações de mil novecentos e cinquenta
até mil e novecentos e setenta que foram iniciadas na escola pelo prof. José
Arnaldo e pela profª Ivani.
Não é
tarefa fácil analisar o legado deixado por Zé Arnaldo à história de Passa
Quatro. No campo da educação e da cultura, sem sombra de dúvida foi ele o
principal responsável pela instrução e pelo encaminhamento de várias e várias gerações.
Mesmo que o propósito fosse o de tão-somente prepará-las para a vida, acabou
ele solidificando a base intelectual e cultural da população para emancipar o lugar
e dirigir com competência os destinos do novo município.
Na
verdade, uma coisa parece clara: se a emancipação de Passa Quatro foi precoce,
como muitos apregoavam na época, devido à falta de estrutura física, o povo, no
entanto, encontrava-se preparado para o grande feito. Tanto é que o progresso
se fez com uma rapidez assustadora, destacando-se no cenário estadual já no
correr da administração pioneira. E o professor José Arnaldo é protagonista
nessa história, porque foi ele quem deu o básico para a formação de toda essa
gente.
No
aspecto religioso, da mesma forma, era ele o responsável pela capela, pela reza
do terço nos finais de semana e pelas novenas nas ocasiões de festa. O padre
quase não ia ao Povoado, mas, mesmo assim, com José Arnaldo à frente das
celebrações, a população era na época, na sua quase totalidade, católica,
apostólica, romana.
MANOEL
INÁCIO CANEDO (CANEDO) transferiu-se de Goiânia para Passa Quatro em 1970, com o
objetivo de montar sua própria farmácia, ele que já tinha experiência no ramo.
Foi o continuador das atividades médico-farmacêuticas que antes eram
desempenhadas por Érico Josué Meireles, o Lico.
Chegando às vésperas da Copa do Mundo de Futebol,
Canedo instalou o primeiro televisor da cidade, dando oportunidade para que
todos vissem os jogos da Copa pela televisão. A energia vinha de um motor
estacionário do vizinho. Por causa da falta de energia, decidimos, eu e o
Canedo, ir à procura do político poderoso de Silvânia e da região, José
Caixeta, que, sensibilizado, comprometeu-se a levar energia elétrica para a
cidade, com uma condição: os postes deveriam ser de aroeira e ficariam por conta
da população. Fomos então de fazendeiro a fazendeiro à cata dos tais postes que
eram, ora doados, ora vendidos a preço simbólico. O Manoel Paixão e o Chico
Vieira foram os que mais contribuíram com a iluminação, doando os dois cerca de
150 postes. Foi um trabalho intenso, mas enfim chegou a tão esperada luz.
Como o ensino da cidade era somente até o quarto ano
primário, eu e o Canedo fomos à luta e com muito sacrifício conseguimos criar o
primeiro grau completo, de 5ª a 8ª séries. E o Canedo foi o primeiro diretor do
Colégio, que passou a chamar-se Escola de Primeiro Grau Graciano José da Silva,
hoje Colégio Estadual Adonias Lemes do Prado.
ARCÊNIO
BATISTA RIBEIRO (SENITO) chegou a
Passa Quatro em 1952, vindo da região do Rio dos Bois do Turvo. Montou o
primeiro açougue da cidade. Logo que chegou, morreu uma senhora, e como não
havia coveiro, diante do impasse o Senito ofereceu-se para abrir a sepultura.
Foi surpresa para muita gente, pois o serviço parecia repugnante. Daí em diante
efetivou-se como coveiro oficial e zelador do cemitério, vindo a aposentar-se
no ano de 1982. Como não havia água encanada, Senito tornou-se também o furador
de cisterna de maior prestígio no lugar.
SEBASTIÃO GONÇALVES
DA SILVA ajudou a arborizar o antigo
Largo da Igreja. E como morava bem no Largo, era a pessoa que montava guarda
para zelar pela beleza e crescimento dos arvoredos. Ai daquele que se atrevesse
a mexer naquelas plantas!
Foi um homem valente, que desafiou setenta e sete anos
de uma vida suada, sofrida, mas honrada e feliz. Juntamente com Dona Maria
Fernandes, a companheira fiel e inseparável de quase meio século de vida comum,
soube criar e educar sete filhos.
Uma
vida pobre, pautada pela simplicidade. Mas éramos felizes. Faltava dinheiro em
casa, porém a família se fartava em dignidade, trabalho, esperança e muita paz.
Não havia luxo. Mas como ele próprio dizia, “o da boca nunca faltou”. Não era
lá de muita conversa, mas tinha um coração afetuoso e enorme.
Meu
pai passou-nos a imagem de um homem honesto, lutador, dedicado à família, amigo
de todos e respeitado na sociedade. Foi a melhor herança que nos deixou. O seu
exemplo de vida foi a nossa principal escola.
Era quase analfabeto, porque não teve oportunidade de
estudar e também porque no seu tempo o estudo não era uma prática costumeira na
região. No entanto, sua sabedoria era algo admirável. Nunca tivera professor,
gabava-se ele. Inclusive aprendeu sozinho a fazer a contabilidade de seu pequeno
comércio. Aprendeu a dominar bem as quatro operações aritméticas.
Veio
ele da região do Roda Cuia, entre os Municípios de Bela Vista e Piracanjuba.
Casou-se com moça do lugar e foi morar na Fazenda Córrego Fundo do Zé Orlando.
Foi lá que nasci. De lá mudamos para a Fazenda Passa Quatro dos Braga, depois
para o Guarirobal. Mais adiante, numa Quinta-feira Santa, eu com 6 anos de
idade, transferimos residência para o então Patrimônio de São Miguel.
Meu
pai continuou trabalhando na roça. Na enxada, ora como meeiro ora como
arrendatário, plantava o arroz, o feijão e o milho para o consumo da família.
Com o milho, engordava o porco e as galinhas do gasto. No tempo que sobrava
cultivava plantação de fumo, com o que se apuravam alguns trocados para as
despesas gerais de roupa, calçado etc.
Lembro-me
perfeitamente de quando saía da escola, lá pelas dez e meia da manhã, e imediatamente
ombreava a vasilha de comida. Andava a pé légua e meia, às vezes mais, às vezes
menos, para matar a fome do velho. Chegava pelo meio-dia ou mais. Depois do
quilo, pegava com ele na enxada, debaixo do sol ou da chuva, só deixando o
serviço depois que o sol se punha.
Eu
era muito criança e morria de medo de assombração e de onça. Várias vezes me
perdia no mato, quando o trabalho era arrancar muda de fumo, e a única coisa
que sabia fazer era chorar e gritar até meu pai ouvir e responder. Eu não
entendia por que ele aproveitava as pequenas queimadas nos miolos das matas
para semear semente de fumo!
E aí
sofríamos os dois: eu, de medo, e ele, de fome. Depois ele me consolava.
Dificilmente bradava comigo. Só quando fazia algo errado. Conversávamos pouco,
mesmo trabalhando juntos diariamente, mas era o suficiente para me ensinar
muita coisa.
Seu
Sebastião teve inúmeras profissões. Depois de muitos anos como lavrador, ele
experimentou a carpintaria. De carpinteiro passou a serrador, onde recebeu de
herança a hérnia que mais tarde o levou à morte. Foi também fabricante de fumo,
foi sapateiro, vendeiro, proprietário de loja de tecidos, padeiro. Como padeiro
fez muito sucesso. Do pessoal da época, quem não se lembra do biscoito de
queijo e do pudim que ele fazia?
Era
apaixonado pelo seu Passa Quatro, onde viveu metade de sua vida. Nos últimos
anos de sua existência, porém, teve de transferir-se para Goiânia, para onde
seus filhos já tinham ido em busca de estudo e trabalho. Foi, mas, contrariado.
Nunca conseguiu adaptar-se à cidade grande.
Mas Deus foi-lhe generoso, permitindo que vivesse o
suficiente para ver um de seus filhos como primeiro Prefeito de sua terra do
coração, com a incumbência de dar continuidade à edificação da obra tão
grandiosa que lhe custou altos sacrifícios, não só a ele como também a tantos
outros, tais como Alcides Pereira de Castro, Érico Josué Meireles (Lico), José
Martins de Carvalho, José Calixto de Carvalho, Pedro Joaquim de Carvalho,
Joaquim Tavares de Aleluia, Horácio Cecílio Ceciliano, Joaquim Fernandes de
Oliveira, José Arnaldo Batista, Jovita Marçal, Sebastião Ferreira, Florípio
José Elias (Fefé), José Borges, Firmino, Carrim, Italco, Sancré, Pedro
João, Jaeme Fagundes, Moisés Roriz e tantos outros.
E na
qualidade de um dos pioneiros do pequeno lugar, de defensor e de benfeitor, acabou
sendo homenageado pela população, que deu seu nome à principal praça da cidade:
“Praça Sebastião Gonçalves da Silva!”
4. Os
Vereadores de São Miguel do Passa Quatro, em Silvânia, antes da emancipação. A
Vice-Prefeitura de Silvânia
Até a emancipação, São Miguel do Passa Quatro foi
sempre voz ativa nas decisões políticas tomadas na sede do Município, em
Silvânia, através de um representante do povo, tendo conquistado uma vez a Vice-Prefeitura.
Foram os seguintes os políticos que representaram o
povo passaquatrense nesse período:
·
Alcides Pereira
de Castro, o primeiro deles, em duas legislaturas de Vereador
(1954/1958-1962/1965);
·
Érico Josué Meirelles,
Vereador (1959/1961);
·
Alípio José
Assunção, Vereador (1966/1970);
·
Francisco de
Souza (Chiquito), Vereador (1966/1970);
·
Florípio José
Elias (Fefé), Vereador (1977/1982);
·
Manoel Martins de
Carvalho, Vereador (1983/1988);
·
Florípio José
Elias (Fefé), Vice-Prefeito de Silvânia (1983/1988)
5. O futebol em São Miguel do Passa
Quatro
O futebol em São Miguel do Passa Quatro era muito respeitado em toda a
região. O time local jogava constantemente contra os times de Cristianópolis,
Rio do Peixe, Batã (Egerineu Teixeira), Vianópolis, Charqueada de Vianópolis e
até Piracanjuba. Dificilmente perdia uma só partida, principalmente dentro de seu
território.
A
Esquadra Passaquatrense, que teve como seu principal técnico o Lico
(farmacêutico), por muitos anos, ficou com uma formação definida. Veja abaixo
sua escalação, colocando-se às vezes dois em cada posição, porque um preenchia
o lugar do outro que deixava o time por motivos diversos, a saber:
Quíper (Goleiro): Evaristo, Tião Santa Bárbara, Silvio
Pereira de Castro e Zezico Pereira
Alfo direito (Lateral-direito): Ditim Chaga e Antônio Bino
Alfo
esquerdo (Lateral-esquerdo): Jair
Cecílio, Pedro Borges
Beque
central (Zagueiro central): José
Paixão, Ludovico de Almeida
Beque
esquerdo (Zagueiro esquerdo): Delcides,
Domingos Vieira
Center-alfo (Médio-volante): Chico Vieira, Evaristo
Meia-direita: João do Italco, Dorival Vieira
Centroavante: Vadim Fernandes
Meia-esquerda: Zezico Pereira, Nilson do Carrim
Ponta-direita: Daniel Marçal, Itagiba
Ponta
esquerda: Zé Pontes, Tião do Creoulo.
Capítulo V
NAQUELE
TEMPO!...
ASPECTOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. BRINCADEIRAS
E TRAQUINAGENS
1. As brincadeiras no Largo da Igreja
O Largo da Igreja era enorme. Propício para as
traquinagens da gurizada. A noite era um breu. Às vezes chovia e escurecia
ainda mais. Quando isso acontecia ninguém brincava. Porém quando era lua clara
- ainda bem que antes da energia elétrica já existia lua - era só chegar no
largo e dar um grito. A molecada vinha na mesma hora. Nós brincávamos de tudo
quanto era coisa. Até de esconde-esconde. Com as meninas a melhor brincadeira
era a de passar anel.
A
brincadeira de “passar anel” era muito romântica e proporcionava a oportunidade
para arranjarem-se os namoros. Consistia no posicionamento de todos, meninos e
meninas, rapazes e moças, sentados bem juntinhos e de mãos postas sobre os
joelhos. Um dos participantes vinha com o anel preso nas mãos, fazendo-as
passar devagar e de maneira carinhosa por dentro das mãos de cada um dos outros
participantes. E dentro de uma delas, normalmente a de simpatia de quem o passava,
o anel era deixado. No final, a pessoa perguntava a qualquer um dos
integrantes: fulano, com quem está o anel? Se a pessoa acertasse, era ela quem
devia passar o anel novamente; se errasse, receberia um castigo: recitar uma poesia,
latir feito cachorro, pular como sapo etc. E aí, quem estava com o anel escondido
iria passá-lo outra vez.
Certa
vez, numa brincadeira de esconde-esconde, o Geraldo Cabaça foi correr e mandou
os peitos na cerca de arame do Zé Patrício que caiu molinho para trás. Deu
muito sangue e nós ficamos apavorados. Correu todo mundo e ele ficou ali
sozinho, gemendo, até melhorar.
Agora o mais gostoso mesmo era o rabo de raposa. No
entanto só acontecia de vez em quando, assim que aparecia um besta que não
conhecia a esparrela.
Quem
preparava o rabo de raposa eram o Jerônimo e o Jaeme Marçal. Às vezes o
Jaeminho também. Eles escolhiam a privada mais fedorenta para sujar bem uma das
pontas de um pau qualquer. E um deles montava na outra ponta, na parte limpa do
cavalo-de-pau, e lá íamos nós atrás, fazendo de conta que íamos pegá-lo. Mas
era só um “faz-de-conta”, até que a vítima,
bem preparada e querendo mostrar proeza, atarracava o tal pau e besuntava-se
toda de fezes ardidas.
2. O Rabo da Raposa e outros brinquedos
Tinha o Bento[1], marmanjão recém-chegado da fazenda, que vinha de
mudança para aprender o abecedário no Povoado. Era costume por aquelas bandas
levar o filho para onde houvesse escola, que era para não ficar analfabeto.
Pelo
menos assinar o nome, ler a cartilha e fazer as quatro operações. “Tá muito
bão. Aprendendo isso já pode voltar pra roça” - era o que defendia seu pai.
O
Bento era meio desengonçado, muito comprido e magrelo. Via-se que era de pouca
destreza, menino que cresceu antes do tempo. Porém de boa família. O pai era
daqueles homens mais sistemáticos de que se tinha notícia na região. Além disso,
era muito rico, o que fazia com que todos o respeitassem.
Acordo
cedo, como de costume. Um carro parado quase em frente da nossa casa. Eram
quatro juntas de bois daqueles bem criados. Decerto pastavam só jaraguá e
meloso, pois que os bichos estavam gordos de dar gosto. A mudança acabava de
desocupar o carro. Muita lenha, lenha de roça nova, boa de pegar fogo. No mais,
uns dois ou três bancos compridos, passados no cepilho, que na fazenda é
próprio para sentar e escorar as costelas, na hora do quilo do almoço e de
tardinha, depois do banho. Havia ainda uma mesona grossa, de madeira, que era
para picar capado.
Ah!
Capados havia três: um mais magro, que gritava demais, motivo de eu ter
acordado assustado; outro, de meia ceva, e o terceiro, que estava sentenciado a
morrer naquele mesmo dia.
Os
catres, lembro bem que eram quatro. Os trados eram de couro cru trançado. Já os
colchões eram de palha, porque não se usava outra coisa naquele tempo. Palha
novinha e com fartura para rechear bem as camas. Feijão eu vi três sacos: dois
amarelos e um roxinho. Arroz eu contei vinte sacas amarradas pela boca. Havia
galinha também, não sei quantas. Galo, recordo-me de um carijó do pescoço pelado
que cantou bonito antes de descer do carro. Era muita fartura! Pensei logo nos
ladrõezinhos de galinha lá da Rua da Lata. Decerto iam fazer a festa!
Fui o
primeiro amigo do Bento. Vi logo aquele jeitão dele e pensei cá com meus
botões: vai agarrar no rabo de raposa hoje ainda! Aproximei-me do chegante para
ganhar-lhe a confiança. E também para começar a ensinar-lhe as catimbas da
corrutela.
-
Olha, Bento, tem o Fiquito, que é tocador de violão, mas é muito metido. Acha
que é o tal. Não faz amizade com ele não. Tem o Nilsinho do Carrim, que briga
com todo mundo. Tem também o Sação que é meu primo; nós estamos de mal agora
pelo motivo da briga de ontem à noite; aliás, nós nunca conseguimos ficar de
bem, pois a gente não combina, não sabe viver sem brigar. Tem ainda o Jair do
Almiro, que é um sujeito bom. Só que nós estamos de mal agora, mas assim: a
gente conversa um com o outro, mas não pode falar o nome não, pois tá de mal.
Se errar e falar o nome do outro aí fica feio, porque puxou conversa; aí tá
querendo ficar de bem, não pode. Tem mais o Manezinho Verônica, que é magrinho,
petitico, mas tem dois irmãos grandes que ajudam ele a brigar e bater na gente;
é povo que deve ficar lá e nós cá; banana pra eles, ó! No mais, a turma é boa.
Nós dois unidos, ninguém vai poder com a gente.
Eu
falava, falava, e o Bento nada dizia. Só escutava, assim meio ressabiado.
- Ah!
Esqueci de falar do Jerônimo do Zé Firmino e do Levi da Dona Bárbara. Eles são
maiores do que nós, mas não brigam com ninguém. São uns coitados. É gente muito
fina. O Levi é irmão do Fiquito, mas é muito diferente dele. Com o Jerônimo há
pouco tempo tive um entrevero, mas foi coisa sem importância. Tinha uns meninos
correndo atrás de mim, já tava escuro, na boca da noite, aí eu dei só uma
paradinha e finquei uma pedrada de estilingue pra trás. Acertasse em quem
acertasse. E acertou justo no Jerônimo, que estava encostado no muro. Pegou por
cima do olho direito dele que fez um papo na mesma hora. Aí eu corri. Ele ficou
jurando vingança muito tempo, mas depois reconheceu que não foi por querer.
- O
problema meu mais do Sação e do Jair do Almiro - continuei - é que tem uns povo
aí que gosta de fazer a gente brigar!
Quando nós estamos juntos, fica atiçando, atiçando... Põe a mão no meio
de nós e fala: “Quem for homem cospe aqui!” Aí a gente não agüenta e cospe
mesmo. Só que o outro tira a mão e o cuspe vai parar na cara do adversário.
Então a gente trança nos tapas na mesma hora. Onde já se viu tomar uma
cusparada na cara e ficar por isso mesmo? Só se tiver sangue de barata! Agora o
mais custoso é que quando a gente começa a trocar tapa, não tem jeito de parar,
porque há empate. Só larga quando um
acerta o nariz do outro. Aí faz sangue e a gente não continua não, porque senão
é crime. Mas nós não temos raiva um do outro não. Só brigamos porque os grandes
atiçam.
Tendo
cumprido o dever de informar o amigo recém-chegado sobre a molecada do lugar,
precisava agora mostrar-lhe os nossos costumes e os nossos afazeres do
dia-a-dia.
-
Sabe jogar bola? - perguntei-lhe por perguntar, já que todo moleque na nossa
idade sabia jogar.
- Nunca joguei não. Lá na roça nós só trabáia!
- respondeu com aquele vozeirão ora grosso, ora fino, próprio de quem está
mudando a fala.
Vai mal, pensei cá comigo. Esse é jacu mesmo!
- Não tem importância, disfarcei. Daqui a pouco a
molecada desce cá pro largo da igreja e ocê fica espiando até aprender.
- E tomar banho no córrego, ocê toma?
- Se
minha mãe deixar eu tomo. - respondeu.
-
Então tá bom, retruquei. Depois a gente pede a ela. Tem um poço ali em baixo no
córrego das Vacas que é muito bom. É meio perigoso que tem muita tiririca. Diz
que tem jacaré também, mas não acredito não, ninguém nunca viu! Jaracuçu eu já
vi um desse tamanho. E tem um lugar lá que a gente não toma pé não. É muito
fundo. Você sabe nadar?
- Com
duas cabaça eu sei, afirmou ele prontamente.
- E
de sacarria, ocê sabe brincar?
- Sei
nem o quê que é isso. - respondeu surpreso.
-
Ora, é brinquedo que pequeno não pode brincar com grande não, porque na hora
dos murros o pessoal bate pra valer mesmo. É assim: um fica no pique e sai
correndo atrás dos outros meninos. Se encostar a mão num, tem que voltar
imediatamente pro pique, negando dos murros, ele e o que ele pegou. E assim vai
indo até pegar o derradeiro que tá brincando. É brinquedo de lua clara e é
perigoso. No escuro não presta não, porque a gente não vê o inimigo e aí apanha
feio. Esturdia o Zecão acertou um murro na cacunda do Jaeme Marçal que ele
chegou gemer. Depois vomitou sangue. E não pode vingar não, porque é
brincadeira. De vez em quando a coisa acaba em briga, mas é menino ignorante
que não sabe brincar direito.
Eu
percebia que o amigo estava começando a se interessar pela minha conversa.
- De
açoite cê brinca? - indaguei.
- Que
jeito que é? - interessou-se o amigo.
-
Açoite é aquele brinquedo de segurar firme na mão um do outro, fazendo aquela
esteira; depois o da ponta, que geralmente é o mais forte da turma, sai
correndo e puxando o resto. Quando ele sente que a velocidade tá boa e no
ponto, aí ele puxa para o lado, em curva, firmando a fileira para açoitar o
último lá da rabeira. Tem vez que o sujeito vai cair lá muitos metros de
distância.
- Não
sei brincar dessas coisas d’ocês da cidade não. - estranhou o amigo. Lá na roça
a gente só trabaia, ninguém tem tempo de vagabundar não.
Não
fiquei ofendido. Mesmo porque o meu dever era o de amaciar o amigo, para logo
mais à noite induzi-lo a pegar o rabo de raposa. Se abrisse com ele uma
discussão naquela hora, poderia correr o risco de perder o freguês. E isso eu
não admitiria jamais, pois uma oportunidade daquelas era rara. Pegar o rabo de raposa
é só para quem nunca ouviu falar naquela brincadeira.
-
Eu quero é ir pra casa, arrematou meu mais novo companheiro, demonstrando já um
certo aborrecimento.
- Mas
correr você deve dar conta, garanto!? - tentei remediar a situação.
-
Correr eu tô acostumado a correr é atrás de boi brabo, sô! - animou-se o garotão.
Isso eu sei fazer! Onte mesmo um bezerro escapuliu do curral e ia bater
direitinho onde tava a mãe; saí correndo, ataiei por baixo, pulei a cerca de
arame num improviso e cheguei primeiro; levei o bicho pro cantinho da cerca,
garrei na oreia do pagãozinho, quebrei o pescoço da fera e derrubei ele no
chão; gritei meu pai: traz o laço e a peia, pai, que o diabinho tá preso! Mas
se eu não fosse bão pra correr, ah, era peta, não cercava o bicho nem que o
Manezim vinha da lenha!
Aproveitei
a animação do meu amigo e fui logo ao assunto, pois a conversa já estava
ficando arrastada e enjoativa e não tinha como segurá-lo mais ali.
-
Você deve ser batuta mesmo é pra correr atrás de raposa, né?!
-
Raposa? Credo em cruz! Aquilo é bicho do capeta. Só serve é pra comer nossas
galinhas tudo. Lá onde nós mora tem demais. Mas lá a gente não corre atrás não.
É na cartucheira que o pai dá venção nelas.
- Não
é raposa de verdade não, é uma brincadeira! - consertei a conversa. O sujeito
monta num cavalo de pau e sai galopando. E a molecada corre atrás pra agarrar o
pau, que nós fazemos de conta que é o rabo da raposa. O que correr mais agarra
primeiro e ganha o prêmio. Mas tem que segurar firme o rabo da danada, senão
não vale. Às vezes a gente tem que atarracar o rabo e abraçar com ele, que é
pra mode segurar mesmo, pra não escapulir.
- Que
hora vai ser? - indagou o chegante.
- De
noite, depois da janta, aqui mesmo no largo.
Chegado enfim o grande momento de pegar o rabo de raposa,
na forma combinada, eu e meu companheiro corríamos lado a lado. Não demorou
muito e o Bento agarrou a bicha, melando-se todo, sob as vaias e os gracejos da
capetada.
Corri para bem longe e só cheguei à minha casa mais
tarde, depois de ter cessado todo o movimento da rua. Mesmo assim ouvi várias
vezes meu companheiro reclamando que eu não podia ter feito aquilo com ele,
pois eu era o único amigo que ele tinha no Povoado. Confesso que fiquei arrependido
e com pena do coitado, mas era tarde.
E foi
nessas circunstâncias que me tornei o primeiro amigo do Bento, mas ao mesmo
tempo o seu primeiro inimigo por vários dias, até o início das aulas, quando
refizemos nossa amizade.
3. O cavalo
e a cisterna
Havia um cavalo pedrês, arisco e bom de trote, que era
bem manjado pela população. Quase toda noite os moradores acordavam com o tal
exarando um sopro pelas narinas, num barulho que incomodava a todos, pastando
um capim duro e resistente. De vez em quando erguia a cabeça para deixar escapar
um relincho estridente, que acordava quem estivesse dormindo.
Não
foi nada não. Os moleques, cujos nomes aqui são fictícios, para não expor
ninguém ao ridículo, com muita astúcia amarraram uma lata vazia, grande, de uns
vinte litros, desocupada, bem barulhenta, no rabo do coitado. E meteram a mão
aberta – assim de chapa –, na cara do relinchador, despachando-o rua abaixo.
E o trem saiu doido, desembestado. A lata beijava o
cascalho, pulava pra cima feito pipoca, tornava a cair, numa desordem e num
alvoroço dos diabos. Quanto mais barulho fazia, mais o cavalo rinchava, corria,
urrava, urinava... Não tinha esse que não comprasse medo.
Já era um pouco tarde da noite, mas mesmo assim alguns
atrasados ainda se postavam no largo da igreja. E o tal marcou no rumo dos
indigitados, dando coices para todas as bandas, querendo desfazer-se daquele
objeto que a incomodava e a agredia. Só se via gente assustada, correndo sem
direção.
Para eles, até aí tudo bem. Achavam graça e
divertiam-se a custas do pedrês. No entanto, num mais que perigoso zigue-zague
pela rua afora, o pobre animal caiu por cima do pescoço, numa cisterna velha
que o dono não tivera tempo para entupir, e acabou morrendo. Nessa hora a
meninada capou o gato. Sumiu todo mundo. Cada qual procurou seu rumo, com medo
das consequências.
No
outro dia, o dono do cavalo era visto campeando, desinquieto, para lá e para cá,
indagando a todos que encontrava pela frente, mas ninguém pôde socorrê-lo com
uma mísera informação, o que concorria para aumentar ainda mais sua aflição. Alguém
mais afeito às coisas da religião chegou a sugerir que ele providenciasse um
responso, a fim de localizar o animal sumido.
Não foi preciso. Logo mais tarde o esconderijo do
finado foi descoberto. Não tinha mais jeito. Não fedia ainda, mas já estava
inchado e azul, à espera dos urubus. Nesse momento, chegou o Zé Fulano, compadre
do inconsolado dono do ex-cavalo. Sugeria que o valor da indenização a ser
cobrada do infrator precisava ser bem alta, mas bem alta mesmo, para cobrir o
valor do animal e o tamanho do desaforo.
O proprietário, homem humilde, nada falava, só
permanecia surpreso diante daquele fato inusitado. Presentes alguns informantes
imbecis, a sorte dos arteiros foi traçada ali mesmo. E assim foram pegos sem
muito trabalho. E para surpresa geral, inclusive do próprio Zé Fulano, que aumentava
o valor da indenização a todo instante e esparramava valentia para todos os
cantos, seu filho era o principal infrator.
Diante da surpresa, Zé Fulano tratou logo de
desconversar, diminuindo o tom da fala e baixando o preço da reparação do dano
a um valor irrisório. Abrandou mais ainda a voz e aconselhou, quase que
implorando: “Compadre, acho que uns trezentos tão de bom tamanho pra cobrir o
prejuízo! O senhor não acha?”
Só se ouviam risos e galhofas. Mas pelo menos não saiu
de graça!
4. Tião Preto,
o valentão
Sucedeu que alguém egresso do
povoado – distante da sede, mas pertencente àquela jurisdição – chegou alarmado
à delegacia de polícia, noticiando que um sujeito que atendia pelo nome de Tião
Preto, muito valente, bravo demais, estava promovendo uma quebradeira dos
infernos na venda do João Pires, na maior balbúrdia, desinquietando a pacífica
população do lugar.
O delegado, que não ostentava nenhuma formatura –
chamado delegado de calça curta –, mas que contava em sua ficha longos anos de
janela, do alto de sua experiência não se esqueceu de prestar atenção ao nome
do perigoso elemento que seus homens deveriam prender: Tião Preto!
- Você viu o cabra? – ponderou a autoridade ao mensageiro.
- De jeito nenhum. Acha o delegado que eu ia chegar
perto daquela trabuzana? Mas nem que a cobra fumasse! De uns cinquenta metros
de distância só se ouvia trem quebrando, gente correndo, e o sujeito lá dentro,
berrando grosso e insultando todo mundo. O povo tava apavorado, doutor.
Diante de informações tão preciosas, o chefe da
delegacia recrutou seis pê-emes e deu ao cabo a incumbência de chefiar a
delegação que deveria trazer preso o valentão Tião Preto, a bem da ordem pública.
- Três home não basta, delegado? – perguntou o cabo,
não propriamente com o intuito de mostrar-se um profissional destemido, mas
para fazer uma mediazinha com o chefe.
- Convém não, Cabo João. Seguro morreu de velho e
ainda morreu. Você viu a ficha do malandro? E o nome dele: Tiããão Preto! Deve
de ser um negão agigantado, daqueles que vêm de longe, preparado pra briga.
Faixa-preta, sei lá! Não quero que minha polícia volte desmoralizada.
Dois jeeps conduziram os componentes da expedição: o
da delegacia e o que veio da prefeitura requisitado para aquela tarefa. No que
chegaram ao povoado, foram direto para o local do crime. Haviam combinado com
antecedência que era para prender o homenzarrão no abafa. Era chegar de uma vez
e não dar oportunidade para o criminoso esboçar qualquer reação. Assim a
empreitada ficaria mais fácil. Foi a estratégia escolhida após calorosa
discussão, antes do contato direto com o perigoso arruaceiro.
E assim se fez. Ou melhor: tentou-se fazer. É que,
entrando de supetão na venda, na pressa do momento não conseguiram vislumbrar o
desafeto. Duas pessoas apenas se achavam no interior do estabelecimento: o
vendeiro, vomitando ódio para todo lado, e uma pequena figura humana, aparentemente
sem importância, sentado com as mãos escorando o queixo, cochilando, já
dominado pelo peso da ressaca.
- Cadê o tal Tião Preto, valente duma figa, que tá
amedrontando o povo? – indagou de maneira ríspida e corajosa o responsável pela
diligência.
- É eu! – respondeu gritando o pretinho, acordando
assustado e arregalando os olhos, sem saber direito de onde vinha a ofensa.
- Teje preso! – decretou a autoridade. – Levanta e
fica em pé!... Digêro!...
Que decepção! Mal conseguiu pôr-se de pé o acusado e
os soldados arriaram as armas, desanimados. O bebum, vendo apontados em sua
direção nada menos do que quatorze fuzis – pelo menos foi o que ele declarou
ter enxergado, mas na verdade eram sete –, sarou da pinga na hora e pôs-se a
tremer feito vara verde, pedindo para tudo quanto era santo.
- Pelo amor de Deus não me mata! Eu sou um coitadinho,
nunca fiz mal a um mosquito.
- Uai, você não é o valentão daqui, bagunceiro, matador?!...
- Sou não! Mentira! Quem que falou uma asneira dessa
pro senhor? Nunca matei uma galinha, nem de estilingue!... Me deixe ir
embora!...
No entanto, mesmo diante daquela dura realidade, que
expunha o vexame da diligência, estavam cumprindo ordem e, portanto, a
obrigação dos abnegados soldados era conduzir o malfeitor até a presença do
delegado, mesmo que se tratasse de um Tiãozinho Pretinho insignificante.
E prenderam Tião Preto assim mesmo, indiferentes às
suas lástimas e à sua manifesta inofensividade. Entregaram-no ao delegado e
deram por cumprida a sua missão.
Foi constrangedor. A autoridade tentava interrogar o
preso, que tremia feito vara verde. O indigitado só conseguia dizer, em defesa
própria: “Sou valente não! Mentira! Quem que falou uma asneira dessa pro
senhor? Nunca matei uma galinha, nem de estilingue!... Me deixe ir embora!...”
Na verdade, foi valiosa a interferência de um amigo,
que contou ao delegado a seguinte história:
“Ele é um pobre coitado! Como o doutor pode observar, ele
não tem nem metro e meio de altura e não pesa mais do que uns quarenta e cinco
quilos. Os dois braços são tortos daquele jeito porque, no nosso tempo de
meninos, ele caía frequentemente nas perambeiras dos rios e os destroncava bem
nas juntas. Vivia com os braços enfaixados. O motivo de ele cair à toa eram as
pernas, também emborcadas para fora e fininhas de nascença.”
O delegado não sabia o que dizer. Apenas ouvia
constrangido.
“O doutor não leve a mal, mas vou contar-lhe um pequeno
fato: Há pouco tempo, o Faria, fazendeiro bom de copo e muito gozador, depois
de uma gorda rodada de cachaça, decidiu sair pela rua a fora, portando nos
ombros um saco de aniagem contendo um objeto estranho, ao que o portador cobrava
uma pequena quantia em dinheiro para exibi-lo ao curioso que se dispusesse a
pagar. Dizia ser um bicho muito feio, trazido da África. Dentro do tal saco
estava nada menos do que Tião Preto, encolhido, cara sem-vergonha, e mostrando
os dentes esbranquiçados. O dinheiro que conseguiam juntar com essa estripulia
era para comprar pinga.”
A decepção do delegado era visível. Permanecia calado,
sem esboçar uma só reação. Com muito custo conseguiu exibir um sorriso amarelo,
mais por educação do que por achar alguma graça naquela história inusitada. E ordenou
que o valentão Tião Preto fosse liberado.
5. No fundo da corrutela tinha um córrego
No fundo da cidadezinha tinha um córrego que corria
deixando pelo caminho poços enormes de águas paradas. Muito batume de um lado e
de outro, com muitas taboas e tiriricas. Com tiririca e tudo, em meio aos
desafios e riscos oferecidos pela planta daninha que corta feito navalha,
tornava-se o piscinão dos desocupados.
Dezenas
e dezenas de moleques tomando banho, pelados, pulando na água de ponta ou de
barriga, e gritando o que a garganta dava. Nenhum bicho selvagem seria tão
corajoso a ponto de permanecer ali por perto. Nem sucuri.
Por
falar em sucuri, certa vez apareceu lá uma baita. Quase três metros de
comprimento. Ainda bem que não foi dentro d’água, senão o Xereca não tinha
escapado. Meninada entretida com o banho, Xereca saiu do meio da turma para o
seco, a fim de receber o afago do sol. Beiços roxos parecendo flor de maracujá.
Tremia feito vara verde. Quando se preparava para sentar-se comodamente em uma
coivara, eis que dá de testa com o aleijo de cobra. Botou a boca no mundo.
Exalou um berro tão estridente e tão feio que todo o mundo ouviu e foi correndo
para ver o que era.
Era
ela: preguiçosa, simpática e astuta. Sorte que estava espichada no mandengo,
exibindo seu exagero dimensional. Decerto apreciava a quentura do sol, ou
estava indo embora de medo da arruaça dos moleques. Não ofendeu ninguém, mas o
medo que provocou na meninada foi para rir vários dias seguidos. Só se ouvia menino
gritando e pedindo socorro, chorando e correndo nu, desordenadamente.
Por
causa desse fato, aquele poço ficou condenado. Ninguém podia banhar nele.
Principalmente porque, além da sucuri, que não era mais embromação dos pais
para amedrontar os filhos, mas que já tornara fato concreto, havia a fama dos
jacarés. Ninguém duvidava de mais nada. Se existia sucuri, que todos viram com
os próprios olhos, por que não acreditar na existência de jacaré?
Passado
algum tempo, não é que um dia apareceu lá um jacaré! Enorme, de dois metros e
tanto de comprimento. Veio atrás de dois meninos imprudentes que nadavam além
dos limites permitidos. Foi uma gritaria dos diabos. Menino corria para toda
direção. A população ficou alarmada. O piscinão transformou-se em local terminantemente
proibido, para desprazer dos irrequietos banhistas.
Se
não era permitido ali, o jeito era buscar divertimento noutro lugar. O Lajeado,
apesar de raso, tinha a vantagem de ser o lavador de roupa da mulherada. Tinha
também o Poço da Pedra, um pouco mais distante, porém mais tranquilo, sem
ninguém para atrapalhar.
Por sorte apareceu o Serafim com uma bicicletinha de
menino, que foi amor à primeira vista para toda a renca de garotos desocupados.
Na cidadezinha havia apenas quatro bicicletas de adulto, e os donos não
deixavam ninguém chegar perto. Quando o pai de Serafim, um dos mais ricos do
lugar, presenteou o filho com a tal bicicletinha, aí a meninada criou alma
nova. Todos queriam aprender a andar. Uns quarenta ou mais na briga para montar
nas duas rodas.
Mas Serafim era menino caprichoso. Até permitia que
andasse no seu veículo, mas impunha uma condição: “Tem que ajoelhar nos meus
pés e me pedir bênção!”
Não deu certo, porque ninguém fez objeção. Serafim
cansou de abençoar moleque sujo e catarrento ajoelhado aos seus pés. A turma
pagava qualquer preço para aprender a andar na tal bicicleta.
Aí ele inventou outra história: “Agora é na porrada.
De dois a dois: quem vencer, pode dar uma voltinha.”
Mas aí o pessoal achou que já era desaforo. E juntou
todo o mundo e fez a bicicletinha virar muitos pedaços, sob os protestos
inaudíveis de Serafim. Se pobre tinha de ser humilhado para andar na dita cuja,
então rico também não andava, ora!
6. A era do estilingue
Naquele
tempo, todo moleque que se prezava possuía um canivete, um estilingue, uma capanga
para a munição, um bom pião e um monte de cordão no bolso.
Terminado
o horário da escola, mal dava tempo de almoçar e eu já saía de fininho, escondido
da minha mãe, para a principal aventura do restante do dia com a turma: a
caçada de passarinho.
Aquela tarde, porém, era especial, e por isso eu não
queria a companhia de nenhum invejoso. Ia sozinho. Estilingue novo no pescoço,
feito colar. Diferente daquela atiradeira confeccionada a toque de machado e
toda arrebentada que me acompanhava há tempo. Mas uma novinha, que meu primo me
trouxera de presente. Forquilha de goiabeira, ainda cheirando a nova, bem
triangulada; borrachas aparadas com muito cuidado e protetor de municiamento
trabalhado em sola batida e macia, para melhor impulsionar a bala de pedra boa,
escolhida a dedo.
Sempre fui bom no estilingue. Lá em casa eu que matava
frango para minha mãe. Uma pedrada só e a cabeça do bichinho rolava. Eu me
sentia orgulhoso e autossuficiente.
Naquele dia eu estava ansioso para batizar minha arma
preferida e colocar o primeiro pique numa das laterais da forquilha. A antiga
tinha vinte e oito piques de canivete, contando de um lado e de outro. E não
cabia mais nenhum. O passarinho virava o pé para o sereno e meu estilingue
ganhava mais um sinal para ficar registrado o grande feito.
Entusiasmado, eu não desperdiçava nenhum balaço em uma
avezinha qualquer. O alvo eram as juritis e as inhambus da tapera do Alcides
Pereira, perto do lajeado.
Mas, diabos! A aflição apresentava-se mais forte do
que a ordenação. Não via a hora da estreia. No percurso, um calango. Pronto!
Está aprovada a perigosa máquina atiradora. Nem mexeu o rabo.
Mais adiante, dois anus brancos, equilibrando-se no
fio de cima do arame farpado que margeava o rego d’água. Não. Não vou arriscar
um tiro nem de brincadeira. Anu é passarinho feiticeiro. Corro o risco de
arrebentar as borrachas novas do meu presente de estimação. Já fui vítima disso
uma vez. Borracha de boa qualidade, novinha. A primeira pedrada foi certeira, o
anu nem tremeu. Porém, na segunda, a borracha arrebentou-se e deu uma baita
lapada na minha cara. Como doeu! Por isso, gato escaldado com água quente tem
medo de água fria.
Na galha de baixo da gameleira, bem exposto e
destemido, um joão-bobo. Não, não mato joão-bobo. Por dois motivos: primeiro
porque é covardia, pois o danadinho deixa a gente chegar tão perto que quase dá
pra pegar com a mão; segundo, parece que ele benze o atirador, que fica igual a
bobo atirando sem acertar o alvo, apesar da pequena distância, completamente
desmoralizado. E se acerta uma pedrada, em vez do pique na forquilha, que é o
motivo de orgulho do bom estilingueiro, o corte acaba aparecendo na borracha,
que logo se arrebenta. É a maldição do joão-bobo, que não é diferente da do anu.
Na frente da casa da tapera, um bando de rolinhas,
catando as migalhas que lhes garantiam o sustento. Rolinha também eu não mato.
Minha mãe ensinou que no tempo que Nossa Senhora e São José fugiram para
proteger o Menino Jesus, as rolinhas vinham atrás deles desmanchando os rastos
para despistar os soldados perseguidores.
Logo, o dedo-duro cantou lá no alto de um angico.
— Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi!
Esse aí eu sapeco. Diz também minha mãe que enquanto
as rolinhas ajudavam a Sagrada Família a ir embora, esse aí ficava o tempo todo
dedurando: “Bem-te-vi! Bem que eu vi!”. Não gosto de gente covarde não.
Fuxiqueiro duma figa!
Deu pressa de voltar para casa. Três juritis e duas
inhambus. A capanga encheu. Pensei em agradar minha mãe. A carne da janta
estava garantida. A velha era só alegria.
Eu tinha muito respeito pela minha genitora. Ela era
muito diferente do meu pai. O velho era bravo, bradava, mas não batia na gente
não. Ela, pelo contrário, era uma fera. Pequena, magricelinha, mas da mão
pesada. Todo santo dia ela me aplicava uma surra. E de chinelo, daqueles
chinelos de antigamente, de salto grosso e sola batida. Não havia menino que se
atrevia a suspender o topete.
Contudo, depois da boa média feita com ela, eu tinha
permissão para sair de novo e aproveitar bem aquela tarde.
A turma encontrava-se no largo da igreja. Uns
brincando de finca, outros jogando biloca e outros ainda exibindo a habilidade
de rodar o pião. Era só chegar até a esquina e gritar: “Ôôôôôôiê!” E o pessoal
entendia na hora: era para tomar banho no rio.
E lá íamos nós, caminho abaixo, com destino ao Poço da
Pedra. Íamos escondidos dos nossos pais. Minha mãe detestava esse nosso
costume, que ela reputava de má qualidade, pois achava muito longe, ficava
preocupada com a possibilidade de afogamento e eram conhecidos os entreveros e
as desavenças da molecada. E além do mais, ela sabia que eu não era de enjeitar
briga, embora fosse ainda de pouca idade. Por isso, toda vez que eu chegava do
tal Poço da Pedra, levava umas cinco ou seis chineladas, assim uma atrás da outra.
Ali escurecendo, era chegada a hora de amarrar as
vassouras-curraleiras e as pontas de capim, para ver a velharada cair ao chão.
Não havia rua capinada e muito menos patrolada. Era
tudo mato. As vias públicas serviam muito mais de pasto para as éguas do que de
trânsito para os moradores do lugar. Não havia nem automóvel circulando. Assim,
o povo locomovia-se a pé, em trilheiros que se formavam entre uma localidade e
outra. Isso facilitava o nosso serviço.
Os meninos mais encapetados é que tinham coragem para
essas coisas. Eu ficava de longe espiando, escondido na moita junto com outros.
A gente ria baixinho, pois senão o desafeto nos descobria e contava para nossos
pais. Essa de pai ficar sabendo não podia acontecer de jeito nenhum.
Cada um que tropeçava na armadilha cambaleava, catava
mamona, e dava com as fuças no chão. E não tinha esse que não xingava daqueles
nomes feios de rachar aroeira. Desgraça e fedaputa eram dos menores. E o tanto
que rogavam praga! Da mãe até a terceira geração do arteiro estavam todos praguejados.
Eu morria de medo e de remorso, mas não podia falar nada que a gente apanhava
dos companheiros. Porém não aguentava sem rir também.
— Praga de urubu não pega em beija-flor! – rebatiam os
autores da estripulia, de coração mais endurecido.
O pequeno arraial possuía poucas casas. E as
existentes eram erguidas com paredes de adobe. Inclusive a fabricação desses
blocos de argila absorvia grande parte da mão de obra naquela época.
Uma das malvadezas da meninada, à noite, era sapatear
sobre os adobes feitos durante todo o dia, enquanto restavam ainda verdes.
Pessoas havia que perdiam todo o trabalho desenvolvido com sacrifício e suor
numa jornada inteira.
Como crianças, acabávamos assimilando o que os adultos
faziam em forma de trabalho e garantia de fonte de renda. Gostávamos de
fabricar nossos próprios tijolos de barro cru. Usávamos forma de caixa de
fósforo e com eles construíamos pequenas casas, formando miniaturas de cidades
com ruas e praças.
A cada cidade dávamos nome diferente: Bonfim,
Brasília, Anápolis, Goiânia... E não raras vezes, no outro dia, quando
voltávamos da escola e sentíamos desimpedidos para a continuidade da tarefa, o
Joãozinho do Otacílio já havia passado por lá com aquele botinão quarenta e
quatro e macetado tudo. Dava vontade de brigar, mas ele era esperto e corria igual
a irara.
Sabíamos da vida de todo o mundo do lugarejo. Trepados
na copa frondosa das árvores do Largo da Igreja, noite escura, bem quietinhos,
dávamos notícia de tudo que se passava: quem namorava quem, mulher de qual
corno estava traindo o marido, quais os homens casados mais sem-vergonha, as
biscatinhas mais reguilidas... No outro dia os nomes dos infelizes rolavam de
boca em boca, na escola, entre a gurizada.
Hoje me recordo que quando minha mãe me batia – e isso
ocorria quase que diariamente – eu costumava resmungar sozinho, lamentando a
dura vida de criança: “Um dia vou ficar grande, ah se vou!” – desabafava. “E aí
não vou ser preciso apanhar mais não, viu! De jeito nenhum.”, concluía.
Engraçado! Agora, adulto, tenho saudades daquele
tempo. Até mesmo das chineladas que eu levava de minha mãe.
Queria ser menino novamente!...
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