Cantinho da Saudade

O LARGO DA IGREJA
O Largo da Igreja era enorme. Propício às traquinagens da gurizada. A noite, um breu. Às vezes chovia e escurecia ainda mais. Quando isso acontecia, ninguém brincava. Da onde que algum dos meninos comprava coragem para ficar na rua numa escuridão daquelas! E o medo de assombração! Porém, quando era lua clara – ainda bem que antes da energia elétrica já existia lua –, era só chegar ao Largo e dar um grito bem alto: “AAAôôô...!”. A molecada vinha na mesma hora.
Brincávamos de tudo quanto era coisa. Até de esconde-esconde. Uns brincavam de finca, outros jogavam biloca, e outros, ainda, exibiam a habilidade de rodar pião.
Com as meninas a melhor brincadeira era a de passar anel. Muito romântica, por sinal.Proporcionava a oportunidade para arranjar namoradinha. Consistia no posicionamento de todos, meninos e meninas, rapazes e moças, sentados bem juntinhos e de mãos postas sobre os joelhos. Um dos participantes vinha com o anel preso nas mãos, fazendo-as passar devagar e de maneira afetuosa por dentro das mãos de cada um dos participantes. E dentro de uma delas, normalmente a de simpatia de quem o passava, o anel era deixado. No final, a pessoa perguntava a qualquer um dos integrantes do grupo: “Com quem tá o anel?” Se a pessoa acertasse, era ela quem devia passar o anel novamente; se errasse, recebia um castigo: recitar uma poesia, latir feito cachorro, pular como sapo, miar igual a gato etc. E aí, quem estava com o anel escondido se apresentava e iria passá-lo outra vez.
            Outras vezes, quando alguém berrava alto: “Ôôôiêêê!...”, o pessoal entendia a diferença e a sutileza do chamado: era para tomar banho no rio. E lá íamos nós, trilheiros abaixo, com destino ao Poço da Pedra. Claro que era escondido dos nossos pais. Minha mãe detestava esse nosso costume, que reputava de má qualidade, pois achava muito longe, ficava preocupada com a possibilidade de afogamento.
De fato eram conhecidos de todos os entreveros e as desavenças entre a molecada, o que causava maior preocupação aos pais. Além do mais, minha mãe sabia que eu não era de enjeitar briga, embora fosse ainda de pouca idade. Por isso, toda vez que eu chegava do tal Poço da Pedra levava umas cinco ou seis chineladas, assim uma atrás da outra. Apanhava na bunda que, segundo ela, não tinha perigo de machucar. Eu ficava admirado com o tanto que ela era magrinha e o tamanho da força que ela tinha para manejar um chinelo. Doía, cara!
Ali escurecendo, era chegada a hora de amarrar as vassourascurraleiras e as pontas de capim que margeavam os trilheiros, para ver a velharada cair ao chão. Não havia rua capinada e muito menos patrolada. Tudo era mato. As vias públicas serviam muito mais de pasto para as éguas sem dono do que de trânsito para os moradores do lugar. Não havia automóvel circulando também não. Assim, o povo locomovia-se a pé, em trilhas que se formavam entre uma localidade e outra. Isso facilitava o serviço.
Os meninos mais sapecas é que tinham coragem para essas coisas. Eu ficava de longe, espiando, escondido na moita junto com os outros mais medrosos. A gente ria baixinho, pois senão o desafeto nos descobria e contava para nossos pais. Essa de pai ficar sabendo não podia acontecer de jeito nenhum. Qual pai ia concordar com isso?
Cada um que tropeçava na armadilha, cambaleava, catava mamona, e acabava dando com as fuças no chão. E não tinha esse que não xingava daqueles nomes feios de rachar aroeira. Desgraça e fedaputa eram dos menores. E o tanto que rogavam praga! Da mãe até a terceira geração do arteiro estavam todos praguejados. Eu morria de medo e de remorso, mas não podia falar nada que apanhava. Ninguém tolerava dedo duro. Segundo a nossa lei, dedo duro era imediatamente expulso do banco assim que era descoberto. Porém, não aguentava sem rir também. “Praga de urubu não pega em beija-flor!” – rebatiam os autores da estripulia, de coração mais endurecido.(Programa Bate-Papo em Família do dia 21-10-2015)

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