terça-feira, 29 de setembro de 2015

O SURGIMENTO DA POVOAÇÃO EM LOUVOR A SÃO MIGUEL ARCANJO

Com certeza o cemitério foi o primeiro marco para o surgimento da povoação, visto que foi ele construído para sepultar as pessoas que morriam nas fazendas Passa Quatro, Água Vermelha, Aborrecido e outras próximas, face à enorme distância entre aquelas localidades e as cidades mais próximas, assim como à ineficiência dos meios de transporte.
            Ali por volta de 1928, já pronto o cemitério construído com a autorização da Paróquia de N. S. do Bonfim, da cidade de Bonfim, hoje Silvânia, e em volta dele algumas pouquíssimas casas, os fazendeiros da redondeza decidiram levantar ali uma povoação em louvor a São Miguel Arcanjo. E a referência que se dava à povoação já era o Rio Passa Quatro, razão pela qual, com o uso, o povoado passou a ser denominado pelo povo como “São Miguel do Passa Quatro”.
            Diz-se ainda que Felipe Luiz de Carvalho, mais conhecido na época por Felipe da Costa, e sua mulher, dona Antônia Pinto de Carvalho (Dona Antoninha), ambos já falecidos, teriam adquirido as terras onde hoje se acha a cidade, doando-as à Igreja, para então erguer-se o povoado. Porém a aquisição teria sido apenas verbal e somente cerca de dez anos depois se cogitou de providenciar a documentação. Foi então lavrada uma escritura em manuscrito e a título particular, assinada pelas partes, em Goiânia-GO, no dia 19 de agosto de 1938, e levada a registro no cartório imobiliário no mês seguinte.
            Pelos documentos arquivados na Paróquia de N.S. do Bonfim, na data de 29 de setembro de 1939, quando o Patrimônio foi oficialmente inaugurado com a primeira missa, a povoação já contava com umas vinte casas.
            Portanto, São Miguel Arcanjo é parte integrante da história de SMPQ, tanto que o seu nome foi oficialmente reconhecido como o Padroeiro da cidade. E todos os anos, no seu dia, em 29 de setembro, é realizada pela Igreja Católica a festa em seu louvor, festa em louvor a São Miguel Arcanjo.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

SÃO MIGUEL DO PASSA QUATRO O nascimento de uma cidade (2ª edição) Introdução

                                                   
Primeira edição
                                                                  Elson Gonçalves de Oliveira

 

 

                                       SÃO MIGUEL DO PASSA QUATRO

                                                            O nascimento de uma cidade
                                                                                   (2ª edição)
                         
                              
                       



                                                        2015

                                                                     AGRADECIMENTOS

                                      (Da 1ª Edição)
        
Não me é permitido dar esta obra por concluída sem antes agradecer a várias pessoas que, ou foram coparticipantes da história que aqui contamos, ou se posicionaram como nossas constantes incentivadoras, dando-nos alento para que não desistíssemos no meio do caminho.
            Dentre tantas, citamos:
            O Pai Eterno, pela força e a coragem que nunca nos faltaram, pela saúde e pelos momentos de sabedoria na execução da obra que as futuras gerações certamente se encarregarão de engrandecer e de admirar.
A população de São Miguel do Passa Quatro, pela confiança de nos entregar tarefa tão difícil, mas ao mesmo tempo tão prazerosa e gratificante.
Os VEREADORES, que souberam colocar os interesses do Município acima de quaisquer pretextos, de divergências políticas ou mesmo vaidades pessoais. No decorrer de quatro anos conseguimos tornar natural e espontâneo o diálogo entre o Executivo e o Legislativo, discutindo ideias e buscando, juntos, as soluções necessárias e urgentes para os inúmeros desafios da efetiva e sólida implantação do Município.
            Os servidores da Prefeitura, que nos apoiaram incondicionalmente e souberam entender as nossas boas-intenções de construir um Município sólido, a fim de solidificar o futuro de todos eles. Frise-se mais que sem a participação dos servidores municipais não teria sido possível edificar a obra que hoje é o orgulho de todos nós: o Município de São Miguel do Passa Quatro.
            O Dr. João Paixão, pelo desprendimento de nos apoiar e de nos orientar nos momentos mais difíceis das nossas decisões.
            O Pe. Pedro Celestino, nosso incentivador e guia espiritual.
                  

 




                                                 DEDICATÓRIA

                                                                 (Da 1ª Edição)

Foram tantas as pessoas que compartilharam conosco a tarefa de defender os interesses do novo Município, a fim de estruturá-lo convenientemente e consolidá-lo como unidade da federação. A todos eles dedico este livro, agora na sua segunda edição, e especialmente:
a) A Deus, pela força e a coragem que nunca nos deixou faltar; pela saúde e pelos momentos de sabedoria na execução da obra que certamente as futuras gerações se encarregarão de engrandecer e de admirar.
b) À minha esposa Aparecida Pires de Oliveira (Dona Cotinha), companheira fiel de todas as horas, com quem compartilho as honras de ter plantado o alicerce do Município de São Miguel do Passa Quatro.
c) Aos meus filhos Vassil, Waber e Vanusa que, na adolescência ainda, assumiram conosco a árdua tarefa de caminhar contracorrente, vencer obstáculos e transpor barreiras as mais diversas, para tornar realidade o sonho acalentado por muitas e muitas gerações; ao pequeno Valder Emanuel (em memória), nascido das entranhas de uma passaquatrense inocente e pura, cuja guarda Deus nos concedeu para que o transformássemos em nosso filho do coração.
d) Ao povo de São Miguel do Passa Quatro pela confiança em nos delegar missão tão difícil, mas ao mesmo tempo prazerosa e gratificante.
            e) Aos jovens passaquatrenses como contribuição para o conhecimento da história, para o estudo de suas origens e para reflexão na elaboração de seus projetos de vida, a quem rogamos dar continuidade a esse trabalho maravilhoso e profícuo, quer como empreendedores da coisa pública, quer como simples cidadãos – cidadãos do bem – que lutam em prol do bem coletivo e da prosperidade própria e de seu semelhante.




                                                                         SUMÁRIO


AGRADECIMENTOS (da 1ª edição)                   

DEDICATÓRIA (da 1ª edição)

PREFÁCIO I (da 1ª edição)
PREFÁCIO II (da 1ª edição)
INTRODUÇÃO

1ª Parte - O PATRIMÔNIO DE SÃO MIGUEL

Capítulo 1 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS
1.1 Descobrimento de Goiás
1.2 O Julgado de Santa Cruz
1.3 O Município de Silvânia
1.4 Os ideais que levaram à emancipação de SMPQ                                  
1.5 O projeto de emancipação
1.6 Por que a denominação São Miguel do Passa Quatro?
1.7 O nome Passa Quatro está grafado de forma correta?

Capítulo 2 - O SURGIMENTO DA POVOAÇÃO
2.1 Como vivia o povo de Bonfim, segundo Sêneca Lobo
2.2 O desbravamento da Região do Passa Quatro
2.3 Antecedentes da povoação erigida em louvor a São Miguel Arcanjo
2.4 O surgimento da povoação
2.5 As referências de Sêneca Lobo sobre SMPQ
2.6 Primeira Missa. Inauguração Oficial do Patrimônio

Capítulo 3 - O PATRIMÔNIO DE SÃO MIGUEL, SUA GENTE, SEUS USOS E COSTUMES
3.1 As diligências de Sêneca Lobo a SMPQ
3.2 Proprietários rurais no ano de 1920, segundo dados do recenseamento do Brasil
3.3 Moradores do Patrimônio na década de 1950
3.4 Os festejos
3.5 O leilão das canas
3.6 O episódio do padre e o puteiro
3.7 Outras prendas do leilão
3.8 O serviço de alto-falante do Dito Bode

Capítulo 4 - ASPECTOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS DO PATRIMÔNIO DE SÃO MIGUEL, NOS ANOS 50
4.1 Dados sociais e econômicos do Patrimônio de São Miguel, nos anos 50
4.2 A vida dos habitantes do Patrimônio de São Miguel
4.3 Pessoas que fizeram história em São Miguel do Passa Quatro
4.4 A representação política de SMPQ em Silvânia. A Vice-Prefeitura de Silvânia

Capítulo 5 - NAQUELE TEMPO!... ASPECTOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. BRINCADEIRAS E TRAQUINAGENS
5.1 As brincadeiras no Largo da Igreja
5.2 O Rabo da Raposa e outros brinquedos
5.3 O cavalo e a cisterna
5.4 Tião Preto, o valentão

5.5 No fundo da corrutela tinha um córrego

5.6 A era do estilingue


2ª Parte - O MUNICÍPIO DE SÃO MIGUEL DO PASSA QUATRO. CRIAÇÃO E INSTALAÇÃO

Capítulo 1 - O PERÍODO ENTRE A CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO E SUA INSTALAÇÃO (09/01/88 - 01/01/89)
1.1 A Lei da Emancipação
1.2 As condições impostas pela Lei da Emancipação
1.3 A expectativa da população
1.4 A campanha política
1.5 A eleição
1.6 Local de funcionamento da Prefeitura e da Câmara de Vereadores
1.7 A Receita Tributária do novo município
1.8 Preparação da primeira equipe de trabalho
1.9 Identificação do Município e do seu povo por ocasião de sua criação e instalação

Capítulo 2 - A INSTALAÇÃO DO MUNICÍPIO
2.1 A posse dos eleitos
2.2 Ata de posse dos eleitos, na íntegra
2.3 Discurso do Prefeito, na solenidade de posse
2.4 Organização política
2.5 Organização administrativa        
2.6 Primeiras aquisições materiais

Capítulo 3 - PLANEJAMENTO ADMINISTRATIVO
3.1 Jornal O Patrimônio
3.2 O Projeto Educacional e o Êxodo Rural
3.3 Planejamento Urbano. Plano Diretor
3.4 Mudanças
5.5 Diagnóstico do Município       

Capítulo 4- A ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. ATIVIDADES URBANAS
4.1 A construção das Praças
4.2 Abertura das ruas. Indenizações
4.3 Água tratada
4.4 O Posto do BEG
4.5 Os mutirões
4.7 A reforma do prédio e da estrutura da Igreja
4.8 CRELA. Sonho e realidade
4.9 A sede da Prefeitura e da Câmara Municipal. A avaliação de dois anos de administração
4.10 Obras realizadas na cidade

 

Capítulo 5 - O DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO, DO ESPORTE E DO LAZER

5.1 O projeto educacional e o Programa de Assistência ao Estudante (PAE)
5.2 Recuperação do Colégio Adonias Lemes do Prado
5.3 Principais investimentos na área da educação
5.4 Biblioteca
5.5 A Bandeira do Município

Capítulo 6 - A ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. ATIVIDADES RURAIS
6.1 O transporte de estudantes. A precariedade e a inexistência de estradas
6.3 As estradas e outros serviços prestados na zona rural. O PAPR
6.4 Incentivos
6.5 Agricultura
6.6 A lavoura comunitária e a Emater
6.8 O asfalto

Capítulo 7 - O TRABALHO NA ÁREA SOCIAL E NA SAÚDE
7.1 A Política Social
7.2 Atendimento na área da saúde
7.4 Creche José Calixto
7.5 Trabalho da Primeira-Dama não tem férias
7.6 Aposentados homenageiam Primeira-Dama
7.7 Resumo do trabalho da área social

7.8 Dois fatos dignos de registro. A vinda de Emanuel


3ª Parte - O MUNICÍPIO DE SÃO MIGUEL DO PASSA QUATRO VINTE E CINCO ANOS DEPOIS

Capítulo 1 - A CAMINHADA CONTINUA
1.1 As diversas composições do Poder Legislativo
1.2 Poder Executivo. Os administradores do Município
1.3 Vinte e cinco anos depois e as perspectivas para o futuro

GALERIA DE FOTOS
VIVA PASSA QUATRO, TERRA DA AMIZADE!                                           
FONTES CONSULTADAS
                                                                                                                                                                                                                              

                                                                              PREFÁCIO I
                                     (da 1ª edição)
                Uma imensa demonstração de amor

            Honrou-me o Dr. Elson Gonçalves de Oliveira com o convite para fazer a apresentação da obra de sua lavra intitulada “São Miguel do Passa Quatro – o nascimento de uma cidade”.
            O convite me deixou assaz sensibilizado, porém apreensivo, porquanto pessoas há, às mancheias, capazes de desincumbir-se desse mister com mais maestria do que eu, jejuno que sou nesse difícil e engenhoso ofício de alinhavar palavras.
Tive o prazer de conhecer o Dr. Elson nas lides da Justiça, ele como brilhante e aguerrido causídico, eu como novel magistrado, titubeante no exercício de dar a cada um o que é seu, no dizer do grande Ulpiano.
O autor, nascido no município cuja história se propôs a narrar, é originário da zona rural. Conseguiu realizar seus estudos com grande dificuldade, posto que era desprovido de recursos materiais, fato que o levou a trabalhar ora nas estafantes tarefas da lavoura, ora como professos primário e do ensino médio, ora, ainda, como vendedor numa loja de tecidos.
Materialmente pobre, como já se disse, o Dr. Elson era dotado, porém, de inteligência, vontade e coragem de lutar por dias melhores. Soube suplantar, com criatividade, os obstáculos que se lhe antepunham, graduando-se em Direito, em 1978, pela Universidade Federal de Uberlândia-MG.
Retornando à sua cidade natal, preocupado com o seu desenvolvimento, conseguiu eleger-se pelo democrático voto popular, prefeito de São Miguel do Passa Quatro, tendo pela frente o grande desafio de implantar o município recém-criado, na condição de seu primeiro chefe do Executivo.
Cumprido o seu mandato (1989-1992), voltou o autor a residir em Vianópolis, onde tem exercido a advocacia.
O desempenho da atividade advocatícia do Dr. Elson, de primeira qualidade, eu tenho testemunhado há mais de um lustro. Não conhecia, contudo, a sua vocação literária e de “cronista” (este último vocábulo significando não o escritor de crônicas, mas o historiador, como era conhecido na Idade Média e início do Renascimento, na Europa, à moda de Fernão Lopes, em Portugal).
Constatei, com alegria, que a mesma competência com que o autor desenvolve os seus misteres jurídicos fê-lo construir a história do município em que nasceu, evidenciando que não lhe falta na vida honesto estudo, com longa experiência misturada, parafraseando Camões.
Demonstrando possuir uma paciência beneditina, o Dr. Elson pesquisou arquivos, reuniu documentos e se furtou, dias e talvez anos, do sagrado convívio com sua família, para arquitetar, com rara felicidade, a obra que agora vem à lume.
A empreitada a que se entregou o autor, importante, porém difícil, mais se avantaja quando se atenta para o fato de que, num país que não cultua a sua memória, como é o caso do Brasil, escrever sobre um município que começa a dar os seus primeiros passos, gravando-se em bronze, para os pósteros, a sua gênese e desenvolvimento, é uma imensa demonstração de amor.
E esse amor o autor tem exteriorizado durante toda a sua vida, uma vez que nunca renegou a sua origem e tudo tem feito para elevar o nome de sua querência, quer administrando-a, como primeiro alcaide, quer narrando-lhe a história, como agora o faz, para sua perpétua memória, o que é de enorme relevância, sobretudo quando se sabe que tal labor não traz retorno pecuniário a quem o realiza, mas apenas satisfação pessoal, além de peculiar cansaço e, às vezes, a indiferença de pessoas não comprometidas com o trabalho intelectual.
O livro em comento, escrito numa linguagem escorreita, clara e objetiva, fornece ao leitor, em suma, os antecedentes históricos de São Miguel do Passa Quatro, os usos e costumes de sua gente, seus aspectos sociais, econômicos e culturais, a criação e instalação do município, bem como o que já se fez nas áreas da educação, de esportes, de lazer, da saúde e social.
“São Miguel do Passa Quatro – o nascimento de uma cidade” – é uma publicação excelente sob diversos aspectos, quer pelo conteúdo, quer pela clareza com que foi escrita, quer pela sistematização dos fatos, narrados com exatidão, porque são fundados em farta documentação de origem induvidosa.
A obra em referência deve ser lida e conservada pelos passaquatrenses que prezam a memória de seu município (e por todos aqueles que se interessam pelas histórias das regiões brasileiras) como uma verdadeira relíquia de imensurável valor. Está de parabéns o Dr. Elson pela brilhante ideia de escrevê-la e pela forma como o fez: desinteressada, séria e competente.
           (Chrispim Silva Araújo, escritor, professor da Universidade Católica de Goiás e Juiz de Direito em Vianópolis-GO)


                                   PREFÁCIO II
                                     (da 1ª edição)
                                                            História de uma cidade
                                      
Povo sem história é povo sem identidade, já disse alguém. Mesmo o estreito reduto do lar ganha muito com os álbuns de família, as fotografias, cartas, e até as anotações, que quase ninguém faz. Isso sem falar do entrelaçamento fraterno e unido dos familiares, que passará para as gerações descendentes um histórico temperado de elevado orgulho familiar.
A cidade também é uma família, abrangendo todo o município, e, até mais do que a família consanguínea, tem uma história, que pode ficar perdida na noite dos tempos, se algum de seus filhos não se der o trabalho e a consideração de registrar na “fotografia escrita” a imagem social e os fatos históricos da comunidade, ao lado das possíveis fotografias de pontos e pessoas que ficaram enterradas no tempo, como alicerces e esteios de seu progresso.
Escrever história não é fácil; não é trabalho para um, mas para os capazes.
São Miguel do Passa Quatro tem uma história centenária, que só agora ganha assento em livro. O doutor Elson tem todas as credenciais para iniciar essa caminhada literária de documentação, abrindo caminho a outros pesquisadores, e soprando a brasa do bairrismo de tantos passaquatrenses, letrados ou não. Aliás, ninguém melhor do que ele para essa façanha, pois o que faz é descrever – com as tintas vivas do seu afeto ao cenário, palco e oficina de toda sua vida – o caminho que ele percorreu, palmo a palmo, a pé, descalço, trazendo ao ombro o pesado fardo das dificuldades e do guatambu. Conheci-o em 1961, em Vianópolis, onde, já no segundo semestre, apareceu no colégio em que eu lecionava, em busca do Curso de Admissão, que preparava estudantes a caminho do Ginásio (hoje, II Fase do Primeiro Grau), todos sujeitos à exigência legal do exame de admissão, verdadeiro vestibular, que a muitos assustava. No Passa Quatro já não havia escola para ele: o Primário, de quatro anos, estava concluído; o sonho da ave voadora, que contempla horizontes e alturas, estava aceso. Chegou bem garoto e magro como a própria fome, ou como o bambuzinho da pesca de lambari, além de arisco e tímido, como todo roceiro da época. No final do ano, foi aprovado e matriculado na primeira série do curso ginasial (a Quinta série de hoje), para o ano de 1962, ganhando o prêmio que o Ginásio Armindo Gomes – pela sua diretora, dona Maria Passos do Nascimento – dava ao primeiro classificado nos exames de admissão: a coleção dos livros didáticos adotados no primeiro ano. Mal resistiu às suas dificuldades financeiras durante a primeira série, e o cordão das necessidades o arrastou de volta ao “cabo da sem-graça”, com o qual acabou cumulando função no magistério primário. Em 1970, – em  situação que não cabe descrita na estreiteza dessas notas – descobre o Supletivo. Faz o primeiro e o segundo graus em menos de dois anos, e bate às portas da Faculdade de Direito, que se lhe abriram com as chaves de mais um vestibular, agora, de nível superior. A ave descera, mas já voava de novo, na direção dos picos do saber. Antes de se formar, já se movimentava na prática advocatícia, tornando-se o conceituado e competente advogado que é hoje, 1998. Sobrevindo os ideais de emancipação do Passa Quatro, realizou seu sonho de ser o primeiro prefeito da Terra-berço de seus pais e dele próprio. Instalou o município, estruturou a Administração Pública e escreveu na pedra dura do nada-existente-até-então o primeiro capítulo do seu torrão natal emancipado.
O livro que agora publica não só conta as marchas e realizações de seu governo: reúne fatos e situações, casos, acontecimentos do povo que construiu o que aí está, com mais conforto para os jovens de hoje e para os lutadores de ontem. Sem dúvida, o livro não é uma História Completa, mas não deixa de ser uma boa ajuda, valioso subsídio, bom começo-de-conversa para os escritores passaquatrenses do futuro. Começa falando de bandeirantes de mais de dois séculos transitando por aqui, sem atinar que ele mesmo é o bandeirante moderno, desbravando corajosamente o campo literário historiador desta Terra que resolveu crescer.
Parabenizo o Autor, cujos passos culturais acompanho desde o seu mais tímido engatinhar, e congratulo-me com o povo passaquatrense – sobretudo com os estudantes – pela chegada de mais este filho ilustre, o primeiro filho literário da família, o livro do doutor Elson Gonçalves de Oliveira, SÃO MIGUEL DO PASSA QUATRO – O NASCIMENTO DE UMA CIDADE.
         (Orlandino Barbosa de Lima é professor de Português e Inglês e Promotor de Justiça aposentado. Reside em Silvânia-GO)


                                              


                                      INTRODUÇÃO

Esgotada a edição anterior deste livro, já há algum tempo, e devido à procura insistente por informações precisas sobre a origem e o desenvolvimento do município que recebeu a denominação de São Miguel do Passa Quatro, forçoso foi pensar na sua reedição, a fim de satisfazer uma necessidade premente. Estamos fazendo-o agora, com imensa satisfação.
Passados 25 anos de sua criação, muitos fatos poderiam ser contados acerca do progresso desta próspera unidade da federação, para orgulho de um povo que sonha e que trabalha de forma competente, honesta e incessante. Mas não é esse o propósito. Certamente a prosperidade do município será o principal tema de outro trabalho literário, quer concebido por nós quer por estudiosos mais brilhantes.
No momento presente, a nossa preocupação é no sentido de enriquecer o texto com novas informações que só vieram à tona em tempo posterior ao lançamento da primeira edição do livro.
Houve também a preocupação de dar nova roupagem e novo ordenamento às disposições textuais, com o intuito não só de possibilitar um melhor entendimento dos fatos ali narrados, como também para imprimir uma didática mais apurada.

Assim é que esta 2ª edição vem à lume com alterações e com outro visual. Fizemos algumas correções e adaptações, para adequar a narrativa à nova realidade ortográfica do nosso idioma. Achamos por bem acrescentar ao contexto alguns capítulos e uma galeria de fotos, com a intenção de melhor informar ao leitor, sem, contudo, comprometer a originalidade do livro, tendo em vista que o seu objetivo fundamental não é outro senão mostrar o nascimento de uma nova unidade federativa e a luta de seu povo, assim como a experiência que fizemos quando da implantação e da construção das bases que permitiriam o desenvolvimento de um município forte e próspero, à altura dos sonhos sonhados por sua dileta população. 






SÃO MIGUEL DO PASSA QUATRO O nascimento de uma cidade (2ª edição) 1ª Parte

               1ª Parte

 

  O PATRIMÔNIO DE SÃO MIGUEL



“A bênção e inauguração da Igreja foi, por assim dizer, o começo oficial do Patrimônio, Povoado, ou mesmo, Futura Cidade de S. Miguel.”[1]


       Capítulo I
                                                                                             
                              ANTECEDENTES HISTÓRICOS


1. Descobrimento de Goiás

            Numerosos historiadores, preocupados em levantar a história do nosso Estado, têm feito referência à bandeira de Manoel Corrêa aos sertões dos araés, atribuindo-lhe a descoberta das terras ocupadas pelos índios da nação Goyá.
Outros tantos contam que, em 1.674, Bartolomeu Bueno da Silva, aqui chegando, constatou logo a existência de ouro fácil e abundante, pois as mulheres indígenas usavam em seus colares e enfeites pedaços daquele precioso metal. Encontrou, porém, certa resistência por parte dos silvícolas para que lhe fosse mostrada a mina. Diante disso, usou o ardil de atear fogo em um pote de barro com aguardente, ameaçando-os de fazer o mesmo com os rios e a eles próprios, fato que os deixou amedrontados e apavorados.
Vendo aquele ato inusitado, os nativos deram-lhe o cognome de Anhanguera, que significa “Diabo Velho”, ou “Homem de espírito mau que provoca pesadelos”. O local é onde se acha Vila Boa, hoje, cidade de Goiás.
            Ao regressar à Capitania de São Paulo, Bartolomeu Bueno deixou terras cultivadas, mas levou enorme quantidade de ouro e índios que dariam para povoar uma cidade. A bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva é considerada a que realizou a descoberta de Goiás.
            Contam ainda que, quando Anhanguera adentrou o território dos Goyazes, levou em sua companhia um filho ainda jovem, com o mesmo nome seu, que guardou na mente as lembranças do itinerário do passado. Mais tarde, com o falecimento de seu genitor, o filho de Bueno, já adulto, procurou o então Governador da Capitania de São Paulo, Rodrigo César de Menezes, oferecendo-lhe seus préstimos e serviços, no sentido de fazer a mesma viagem de Anhanguera. O projeto foi aceito, tendo-lhe sido fornecidos recursos e a recompensa da cobrança de pedágio nos rios.
            O segundo Bartolomeu Bueno partiu de São Paulo no ano de 1721 com numerosa comitiva. Ao chegar, encontrou inúmeras dificuldades. E ao alcançar as margens do Rio Paranã, desentendeu-se com os companheiros de comitiva, resultando na separação do grupo e no conseqüente fracasso da expedição. Bueno retornou a São Paulo, sozinho e envergonhado, evitando, por isso, encontrar-se com o Governador.
            Tempos depois, Bartolomeu foi convencido pelo Governador a programar uma segunda viagem, o que efetivamente ocorreu em 1726, quando, finalmente, encontrou o local onde, na sua infância, estivera com seu pai. E aí ergueu o Arraial dos Ferreiros, próximo de Vila Boa. Retornou a São Paulo com 8.000 oitavas de ouro, oportunidade em que o Governador o nomeou para o cargo de superintendente das minas de Goiás.
            Em São Paulo, a façanha foi muito festejada. Por isso Bartolomeu Bueno foi elevado à fama de “explorador dos descobrimentos de Goiás”. E a notícia do ouro atraiu para Goiás muitos aventureiros, iniciando a fundação de vilas e arraiais. Foi em meados do século XVIII que a mineração teve o seu índice mais elevado e representou para a economia da Província expressivo lucro.
            Na corrida desenfreada do ciclo do ouro, foram fundados diversos arraiais e vilas na vasta e rica Província de Goiás. Dentre elas inclui-se Santa Cruz, uma das primeiras a ser fundada e das mais importantes na época.


2. O Julgado de Santa Cruz

O Capitão-General Rodrigo César de Menezes, nomeado por Alvará Régio Governador da Capitania de São Paulo, em 5 de setembro de 1721, tomou posse na mesma data e governou durante quase seis anos, afastando-se do cargo em 15 de agosto de 1727. Dentro de suas atribuições legais, ordenou a Manoel Dias da Silva que se deslocasse até as minas de Cuiabá, mineração essa também sujeita à Capitania de São Paulo. Seguindo o caminho desejado, e já em terras da tribo dos Goyazes, Dias da Silva ateve-se em um determinado sítio para repouso da grande comitiva.
De imediato, mandou que se fizesse o que era comum naquele tempo: pesquisa para investigar a existência de ouro. E de fato constatou-se que havia ouro em grande quantidade e de ótimo teor. Em agradecimento a Deus pela valiosa descoberta, erigiu uma grande cruz com a seguinte inscrição: “Viva El Rei de Portugal”
Com esse gesto, Dias da Silva deu àquele sítio – o futuro arraial – o nome de Santa Cruz. O auspicioso evento ocorreu em 27 de agosto de 1729 e constituiu-se no ato solene por excelência de fundação de Santa Cruz.
Em 8 de novembro de 1744, foi criada a Capitania de Goiás, por Alvará Régio, independente da Capitania de São Paulo. E através de Carta Régia de 1809 é criado o Julgado de Santa Cruz, na gestão do Governador Capitão-General Dom Francisco de Assis Mascarenhas. Nesse mesmo ano, e por Decreto Provincial, a Capitania de Goiás foi dividida em duas Comarcas: a do Norte e a do Sul.
A Comarca do Norte, com correição da Comarca de São João das Duas Barras, compreendeu oito Julgados: Porto Real, Natividade, Conceição, Arraias, São Félix, Cavalcanti, Flores e Traíras. A Comarca do Sul, com sede em Vila Boa, recebeu o nome de Comarca de Goiás e compôs-se de seis Julgados, sujeitos à correição da mesma Comarca: Vila Boa, Crixás, Pilar, Meia Ponte, Santa Luzia e Santa Cruz.
O território do Julgado de Santa Cruz era quase do tamanho de Portugal, sem o Algarve, e existia na região oeste imensa área de terra desabitada e desconhecida. Eram os seguintes os seus limites:

“Tomando para o primeiro ponto da divisão do Julgado de Santa Cruz o sítio de Paracaupeba, desce por esse ribeirão em busca do Corumbá e por ele à barra do Rio São Bartolomeu; deste ponto se buscará a barra do Rio São Marcos e seguindo por ele até o cume da serra, descerá pelas cabeceiras dos Dourados até a sua foz, no Rio das Velhas, da qual tirando uma reta à barra do Sapucaí e descendo a demarcação por ele até o Rio Grande e barra do Corumbá e seguindo por este até topar o Rio Anicuns, fecha-se a divisão no Ribeirão dos Bois, no ponto onde se divide o Julgado de Vila Boa e de Meia Ponte, cortando, em linha, a estrada de São Paulo, onde passa o Rio Piracanjuba”


3. O Município de Silvânia

            Verifica-se, portanto, que Santa Cruz dominou todo o sudoeste e parte do sul de Goiás. Em 1809, época da criação do Julgado de Santa Cruz, o seu território de influência possuía imensa área, limitando-se com a Comarca de Paracatu, Província de Minas Gerais, e com a Província de São Paulo.
            Pela Resolução nº 2, datada de 2 de abril de 1833, do Conselho Geral da Província, Goiás foi dividida em quatro Comarcas, assim distribuídas:

“Art. 2º - A Comarca de Goiás compreenderá os termos da cidade de Goiás e das vilas de Jaraguá, Meia Ponte, S. José do Tocantins, Traíras e Pilar. A de Santa Cruz compreenderá os termos das vilas de Santa Cruz, de Bonfim, de Catalão e de Santa Luzia. A Comarca de Cavalcanti compreenderá os termos das vilas de Cavalcanti, Flores e Arraias. A Comarca de Palma compreenderá os termos das vilas de S. João da Palma, de Natividade, de Porto Imperial e de Carolina.”
                                              
Mais tarde, as vilas e povoados foram desenvolvendo-se, a população aumentando, e as cidades tornaram-se independentes. Assim aconteceu com povoações que pertenciam a Santa Cruz, e dentre elas, Catalão, Bonfim (Silvânia), Campo Formoso (Orizona), Vila Bela de Morrinhos, Santa Rita do Paranaíba (Itumbiara), Pouso Alto (Piracanjuba), Caldas Novas.
            Dizem os mais eminentes historiadores interessados pelo assunto que, possivelmente, a origem do arraial do Bonfim remonta ao ano de 1774, sob a forte influência da mineração. Era o ciclo do ouro que borbulhava em efervescência.
            Em 1782, Bonfim alcançou a condição de capela curada, sob a jurisdição de Santa Cruz, e somente a 26 de outubro de 1833 conseguiu o status de paróquia, tendo sido o primeiro vigário colado Padre Antônio Tomás de Campos.
            A criação da Vila de Bonfim se deu por força de Resolução do Conselho Administrativo da Província de Goiás, logo confirmada pelo Governo Imperial, nos termos da Resolução que segue:
                                                              
         “A Regência, em nome do Imperador e Senhor D. Pedro Segundo, há por bem sancionar e mandar que se execute a seguinte Resolução da Assembléia Geral Legislativa, tomada sobre outra do Conselho Geral da Província de Goiás:
Art. 1º - Fica ereto em vila o arraial do Bonfim, conservando o mesmo nome, e possuindo uma Câmara Municipal, Justiça e as mais atribuições concedidas às demais vilas do Império.
               Art. 2º - Os limites desta vila com a de Meia Ponte são o Rio das Antas desde a cabeceira até onde dá barra no Corumbá; com a de Santa Luzia da barra das Areias pelas covas de mandiocas até onde dá barra no Piracanjuba; com a de Santa Cruz desde o lugar denominado barra das Covas, pelo Rio dos Peixes abaixo até onde dá barra o Passa Quatro, e desta barra cortando rumo direito ao Rio Meia Ponte até as cabeceiras.
               Art. 3º - Ficam revogadas quaisquer disposições em contrário.
               Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho, Ministro e Secretário de Estado e Negócios do Império, assim o tenha entendido e faça executar. –  Palácio do Rio de Janeiro, em dezoito de junho de mil oitocentos e trinta e três, décimo segundo da Independência e do Império. – Francisco de Lima e Silva – José da Costa Carvalho – João Bráulio Muniz - Aureliano de Sousa Oliveira Coutinho. – Transitou na Chancelaria do Império em 31 de julho de 1833 – João Carneiro de Campos”        
           
Nessa época, a Câmara Municipal de Bonfim prevista na Resolução acima já estava em funcionamento, por iniciativa e permissão do Conselho Provincial, e apresentava a seguinte composição: Vicente Miguel da Silva (presidente), Pe. Antônio Tomás de Campos, Francisco de Paula Guimarães, Antônio Umbelino de Sousa, João Luís Teixeira Brandão, Francisco Bueno de Azevedo e José Inocente Ferreira. E como no Império a função executiva era desempenhada pelo chefe do Legislativo, foi Vicente Miguel da Silva o primeiro dirigente da comunidade, o que hoje seria o primeiro Prefeito.
            O termo Bonfim foi usado oficialmente pela primeira vez na Resolução do Conselho Administrativo de Goiás, datada de 2 de abril de 1833. Outras expressões equivalentes como “Capela (ou Arraial) do Senhor do Bom Fim”, “Vila do Bonfim”, ou simplesmente “Bonfim”, vieram sendo usadas até 1943, quando, por força do Decreto-lei nº 8.305, de 31 de dezembro de 1943, o nome foi alterado para “Silvânia”, em homenagem ao patriarca Vicente Miguel da SILVA, o consolidador do Município, e seus descendentes.  


4. Os ideais que levaram à emancipação                           

            Em São Miguel do Passa Quatro, os ideais da emancipação já vinham há muito tempo perseguindo as pessoas responsáveis pelo lugar. Mas a ideia ganhou impulso maior na voz de um vereador ilustre, Alcides Pereira de Castro, que hoje empresta seu nome a uma das principais avenidas da cidade.
            Alcides veio de Santa Cruz de Goiás e aqui fez morada. Foi vereador em Silvânia, representando São Miguel do Passa Quatro por duas legislaturas: a primeira de 1954 a 1958; depois, de 1962 até 1965, quando veio a falecer.
            Como vereador, criou os limites do futuro Município, os quais, mais tarde, foram aproveitados no projeto de emancipação. Apresentou também projeto de elevação do então povoado a distrito, não tendo, infelizmente, logrado êxito, pois devido às suas ideias emancipadoras, alguns políticos da sede do Município já começavam a torcer o nariz e a combater qualquer iniciativa embrionária nesse sentido.
            Porém seu esforço não foi em vão. Pouco tempo depois de sua morte o povoado de São Miguel do Passa Quatro foi elevado a Distrito de Silvânia, por força da Lei Estadual nº 7.175, de 5 de novembro de 1968.
            Outro feito que lhe é creditado é a construção do prédio do grupo escolar, que recebeu a denominação de Escola Isolada Graciano José da Silva, constituído de apenas um pavilhão, onde, mais tarde, abrigou provisoriamente a Prefeitura e a Câmara Municipal, nos primeiros dois anos da administração municipal pioneira.
        

5. O projeto de emancipação

            Em 1976 ingressa na política Florípio José Elias, mais conhecido por Fefé, tendo sido eleito vereador. Os ideais de emancipação já estavam bem mais amadurecidos junto ao povo. Cuidou ele então de fortalecer politicamente a povoação, pensando já no desencadeamento da luta pela independência.
E foi assim que no pleito seguinte Fefé se elegeu Vice-Prefeito de Silvânia, com a promessa de tornar Passa Quatro independente, apoiado pelo Deputado Estadual João Natal. O povo votou em peso, a ponto de decidir a eleição em favor de Fefé e de seu candidato a Prefeito, Milton Tavares Júnior (Zuquinha).
O primeiro passo rumo à criação do Município foi o trabalho junto à população, colhendo assinaturas de um mínimo legal de 160 eleitores para a formalização do processo. E em 29 de abril de 1986 o pedido foi protocolado na Assembleia Legislativa, recebendo o nº 589/86, de autoria do Deputado João Natal que, frise-se, era filho de Silvânia. Merece registro também a participação ativa que teve o Deputado Estadual José Roriz dando continuidade ao processo, a pedido de João Natal e de Fefé.
Em 15 de novembro de 1987 o povo foi consultado sobre a emancipação através de Plebiscito. A esmagadora maioria de 619 votos “SIM” contra apenas 9 votos “NÃO” deu a vitória à criação do Município.
Aprovado o projeto pela Assembleia Legislativa e transformado em lei pela sanção do Governador do Estado, em solenidade realizada no Centro Administrativo em Goiânia, no dia 9 de janeiro de 1988, ficou criado o Município de São Miguel do Passa Quatro através da Lei nº 10.432.
Na solenidade da assinatura da lei (sanção governamental), estavam presentes Florípio José Elias e o jovem João Batista Rodrigues Pereira, ambos representando a população do novo Município.
            No episódio da caminhada para a formalização do projeto emancipatório, há um fato que merece registro. É que a lei exigia como requisito a existência de um mínimo de 200 casas e 1000 eleitores, para dar início ao processo. Mas a quantidade de casas existentes era insuficiente. Diante do impasse, foi necessária a incorporação das casas das chácaras da redondeza. Assim, satisfeita a exigência da lei, a documentação foi entregue nas mãos do deputado João Natal. Consistia o processo na solicitação de autorização para a realização de um plebiscito, onde restaria comprovado o desejo do povo de tornar-se autônomo  e caminhar com suas próprias pernas, ter suas autoridades municipais e arrecadação próprias.

                       
6. Por que a denominação São Miguel do Passa Quatro?

            A Lei nº10.432/1988 determina que o Município criado deverá “ter como sede o Distrito com o título de São Miguel do Passa Quatro”.
            A pergunta que muita gente faz é com relação ao estranho nome “Passa Quatro”. Inclusive o projeto inicial de emancipação trazia o nome São Miguel do Bonfim, o que até certo ponto era justificável por causa da cidade-mãe, Silvânia, antiga Bonfim. Ocorreu, porém, que o povo não quis aceitar a mudança do topônimo, motivo pelo qual, no último momento, a denominação que inicialmente constava do projeto foi substituída para dar lugar ao já popularmente conhecido São Miguel do Passa Quatro.
Não se sabe ao certo qual a origem de tal denominação. No entanto, conseguiu-se até aqui apurar que, no passado, aquele local era um dos itinerários (não havia caminho) para transporte de mercadorias do Porto de Corumbá, na jurisdição de Santa Cruz, para Vila Boa, por meio de carro de bois. Como a viagem era longa, os carreiros preferiam fazer o caminho sempre em grupo constituído de vários carros de bois, pelo princípio da solidariedade, já que aquele meio de transporte oferecia altas dificuldades para o carreiro, como quebra de canzil, de canga, apodrecimento das correias, acidente com os próprios bois etc. Numa dessas viagens, nem todos os carros de bois puderam atravessar o ribeirão por causa de uma enchente de altas proporções. Apenas quatro conseguiram a travessia.
            Esse acontecimento ficou como referência. Toda vez que alguém se referia ao fato, ou àquele local, ou ainda ao ribeirão, dizia: “É lá onde passou quatro”. Com o uso, a expressão foi-se degenerando para “passa quatro”, que passou a ser o nome do rio: “Rio Passa Quatro.”
            Percebe-se que “São Miguel do Passa Quatro” é um nome formado pelo processo de justaposição, consequente de duas histórias que se fundiram: uma, a mais antiga, trata do uso da expressão “Passa Quatro”, que denominou o ribeirão; a outra, do surgimento da povoação em louvor a São Miguel e que teve como referência o rio mencionado.
Com relação à primeira história narrada, envolvendo as possíveis viagens de carros de bois e o nome “Passa Quatro”, é oportuno fazer algumas considerações. Aceitando a versão de Henrique Silva, avalizada pelo historiador Humberto Crispim Borges na obra História de Silvânia, de que os fundadores de Bonfim são procedentes de Santa Cruz; considerando que fazia parte do itinerário percorrido entre uma localidade e outra o contorno da cabeceira do Rio Preto, tendo obrigatoriamente de atravessar o Ribeirão Passa Quatro, o mesmo feito muito mais tarde, já em 1939, por Sêneca Lobo, o Bispo Dom Emmanuel e o Prefeito de Bonfim; considerando ainda que desde o século XVIII o veio abastecedor do comércio de Goiás, com produtos vindos de São Paulo, era o Porto do Rio Corumbá, nas proximidades de Santa Cruz -  forçoso é concluir que a história contada sobre a denominação “Passa Quatro”, embora destituída de qualquer registro, não está descartada de ser verdadeira, podendo os eventuais carreiros solidários serem originários tanto de Vila Boa quanto de Bonfim. E o provável local do acontecimento poderá ter sido a cabeceira do Rio Passa Quatro, onde carinhosamente chamamos hoje de Passaquatinho.
            E mais, se verdadeira tal narrativa, provavelmente o fato aconteceu no final do século XVIII ou início do século XIX, podendo ter coincidência, quem sabe, com a própria origem do arraial do Bonfim, quando o sucesso da mineração forçava um intercâmbio mais frequente e ativo entre os arraiais e as vilas.
Para sustentar essa versão, socorre-se de dois expedientes: um, é o reconhecimento oficial da existência do Rio Passa Quatro, na Resolução da Assembleia Geral Legislativa da Regência do Imperador D. Pedro II, datada de 31 de julho de 1833, erigindo em vila o arraial de Bonfim e fixando-lhe os limites “... pelo Rio dos Peixes abaixo até onde dá barra o Passa Quatro...”; outro, é o fato de o ilibado escrivão Vicente de Paulo Gustavo Lobo (Vivim), titular do cartório de família de Silvânia, ter-me assegurado ser de seu conhecimento o uso do nome “Passa Quatro” em documento datado do ano de 1810.
            Tal versão, no entanto, foi rechaçada por Solon Pereira de Castro, em brilhante trabalho monográfico[2] intitulado “Religiosidade Criadora: um estudo sobre a formação do espaço urbano em Aureliópolis, Gameleira e São Miguel do passa Quatro 1906-1931”
Após transcrição de relato do viajante Francês Auguste de Saint-Hilaire, em seu livro Viagem à Província de Goiás, e de outro viajante, o austríaco Johann Emanuel Pohl, em seu livro Viagem ao Interior do Brasil, ambas as narrações sobre o caminho Bonfim a Caldas Novas, conclui o historiador: 

“A região ainda praticamente desabitada no início do século dezenove, mas o ribeirão já era conhecido como Passa Quatro, isso comprova o equívoco do memorialista Oliveira que atribui o nome a uma suposta passagem de carros de boi em uma ponte. Em 1819 existiam pouquíssimas pontes em Goiás e as estradas para carros de boi nem mesmo existiam[3]

Contudo, em que pese a competência do autor (de família tradicional de SMPQ) e do significativo trabalho que fez vir à lume, entendemos que a versão apresentada nesta singela obra não sofreu abalo nenhum e por isso deve ser mantida. É que o crítico sustenta a sua discordância atribuindo-nos a autoria de informações que não prestamos e que não foram mencionadas no texto tido como equivocado. Veja-se:

suposta passagem de carros de boi em uma ponte”. Ora, em momento algum se falou em ponte, no livro, mas, sim, em travessia: Numa dessas viagens, nem todos os carros de bois puderam atravessar o ribeirão por causa de uma enchente de altas proporções. Apenas quatro conseguiram a travessia.

“e as estradas para carros de boi nem mesmo existiam”.  Da mesma forma, o texto criticado não menciona a palavra “estrada”, tendo se servido da expressão “itinerário”, que, segundo os dicionaristas, significa apenas o roteiro a ser seguido: no passado, aquele local era um dos itinerários (não havia caminho) para transporte de mercadorias do Porto de Corumbá”.


7. O nome “Passa Quatro” está grafado de forma correta?

            Certo dia, alguém mais zeloso pelo bom uso do vernáculo, comentou comigo sobre o emprego correto do nome “passa quatro” frente às normas gramaticais da Língua Portuguesa.
            - Não seria “passam quatro”? - questionou-me o gramático.
            - Seria e não seria – respondi, incontinenti, pois antes já havia feito a mesma indagação a mim mesmo. Pela letra da gramática seria “passam quatro”, visto que o sujeito “quatro” está no plural, o que forçosamente levaria o verbo “passa” também para o plural, ficando “passam”, pois a colocação direta da frase é “Quatro passam”. Porém, levando-se em conta que a expressão fora concebida assim como se apresenta, ou seja, “passa quatro”, e mesmo em respeito à tradição e aos costumes das seguidas gerações locais e principalmente porque foi oficializada dessa maneira na lei de criação (Lei nº 10.432/88), passou o nome “Passa Quatro” a ser neologismo, portanto correto e perfeitamente aceito pela gramática.
É como alguém que recebeu o nome de Antônio e na hora do registro no cartório deixou consignar-se Antonio, sem o acento circunflexo: deverá usar para o resto da vida o nome tal como consta do assento de nascimento, o qual, a partir do registro, passou a ser o correto para ele.
            Entretanto, mais do que correto seria o nome “Passaquatro”, registrado nos arquivos da Paróquia de Nosso Senhor do Bonfim, e que deveria ter sido aproveitado no projeto de emancipação. O topônimo então seria “São Miguel do Passaquatro”.



[1] Pe. Pedro Pinto Ferreira, Vigário da Paróquia de N.S. do Bonfim, em 29 de setembro de 1939.
[2] Monografia apresentada como requisito para a obtenção do título de especialista ao Programa de Pós-Graduação Lato-sensu do Departamento de História da Universidade Federal de Goiás.
[3] Negritamos.


                Capítulo II

                              O SURGIMENTO DA POVOAÇÃO


1. Como vivia o povo de Bonfim, segundo Sêneca Lobo

Antes de se transformar em Silvânia, ato que aconteceu em 1943 e que na verdade não foi mais do que uma simples mudança de nome, a Árvore Bonfinense já se projetava a passos largos rumo ao progresso, em que pese dela terem sido retirados vários preciosos galhos, que floresceram por conta própria e que receberam denominações diferentes, como Vianópolis, Leopoldo de Bulhões, Bonfinópolis, São Miguel do Passa Quatro e Gameleira de Goiás.
            No seu excelente livro Bonfim de Goiás – minha terra e minha gente, editado em 1983, no episódio “O regresso à casa mãe”, José Sêneca Lobo narra a vida do povo bonfinense nos primeiros vinte e cinco anos do século XX, fato que nos interessa sobremaneira, para melhor conhecermos a nossa origem, posto que justamente nessa época que a povoação erigida em louvor a São Miguel Arcanjo começou a ser formada, conforme se verá adiante.
            Conta o saudoso historiador que os meninos de sua época usavam camisola até os nove, dez anos de idade. Depois, os que podiam comprar roupa, usavam calças. As residências não possuíam instalação de água, de luz ou sanitária. A iluminação caseira era com velas de sebo, feitas em casa. Isto na cidade, porque na roça se usava candeia, mantida com azeite de mamona. Os banhos eram de bacia, durante a semana; aos sábados os homens iam ao córrego para o banho completo. As casas dos mais ricos eram assoalhadas e as demais eram de terra batida. O primeiro rádio chegou a Bonfim em 1924 ou 1925 e, para ser ouvido, era preciso colocar fones individuais no ouvido de cada ouvinte.
A maioria da população era mista, meio urbana, meio rural; quase todos tinham suas lavouras, razão pela qual praticamente ninguém comprava arroz, feijão, toucinho e muito menos frutas e verduras. O açúcar era produzido nas fazendas, em engenhos de madeira. As casas de comércio vendiam apenas bebidas, sal e alguma coisa enlatada, como sardinha, cocada, etc.
            Para se vestirem as pessoas plantavam o algodão, que era escaroçado, fiado e tecido, e com o qual se fabricavam calças e camisas de homens e cobertas de todas as cores, algumas de desenhos maravilhosos. Os meios de transporte eram o carro de bois, os cargueiros e o cavalo.
            A população não necessitava de dinheiro em circulação. Não havia bancos. O primeiro a instalar-se no Estado de Goiás foi o Banco Hipotecário e Agrícola do Estado de Minas Gerais, em Vianópolis, no ano de 1926. As notícias de São Paulo e Rio de Janeiro chegavam de mês em mês, pelos jornais, trazidos pelos correios, no lombo de burros. Para passar um telegrama, enviava-se um cavaleiro a Corumbá de Goiás, distante mais de oitenta quilômetros. Pelo ano de 1925 o correio passou a ser semanal, em Bonfim, o que não deixou de ser um progresso muito grande na época.
            Como divertimento os pagodes eram freqüentes tanto na roça quanto na cidade, animados por acordeom, violão e pandeiro, e regados por uma boa pinga de engenho. Para maior animação dos festejos usavam-se tiros de roqueira, alcabuzes e clavina, alimentados com pólvora preta de fabricação caseira.


2. O desbravamento da Região do Passa Quatro

Naquele tempo, toda a região que abrangia a Água Vermelha, Aborrecido, Gamela, Passa Quatro, Rio dos Bois, Matoso era coberta por matas virgens, cerrados fechados e campos limpos, e bichos silvestres. Havia pouca gente, distribuída por algumas fazendas já estabelecidas. O único trabalho existente era o desbravamento do sertão, a fim de abrir lavoura e organizar fazendas, com sede, construção de cercas de arame e pastagem para a criação de gado.
            Ninguém falava ainda em erigir uma povoação na redondeza, porém o desconforto já se fazia sentir de forma preocupante. Debatia-se a questão da quase inexistência (e da precariedade) de bens e serviços, medicamentos e tecidos para o consumo da população rurícola, bem como produtos de primeira necessidade para o desenvolvimento do trabalho nas fazendas, principalmente arame e sal, que só eram encontrados em localidades distantes. E além do mais, a aquisição desses produtos era dificultada pela falta de estradas e pela ineficiência dos meios de transporte. Estes, os transportes, se faziam no lombo de cavalos ou em carros de bois. Muitas vezes, a pé.
            No campo da educação, a grande maioria dos habitantes da região era analfabeta. Não havia escola nem mesmo uma conscientização a respeito do assunto. Aliás, o pensamento generalizado no meio rural do início do século vinte era da inteira desnecessidade do estudo. O que se ouvia dos patriarcas das famílias (por que também eram analfabetos) eram as colocações: “Estudar filho pra quê? Pra tocar roça? Precisa não. Bobagem. Nem eu nem a Maria estudou e nem por isso a gente passa fome! Fulano de tal tá rico, não tá? Pois é, vê se ele estudou? Não foi preciso.”         
            A saúde era precária. Somente nas cidades como Bonfim, Campo Formoso, Bela Vista, numa distância de beira de oito léguas, que o socorro era buscado. A condução era o lombo do cavalo. Se se precisasse de um médico com urgência, era necessário despachar um emissário puxando um cavalo para proporcionar transporte ao profissional da medicina. Isso se achasse um disponível e com coragem, e saúde, para viajar tão longe, ida e volta. Por causa disso, as pessoas utilizavam os recursos caseiros, como chás, banhos, emplastos, benzimentos, raízes, curandeiros.
As causas das mortes normalmente eram: morte repentina, quando a pessoa morria de repente sem causa conhecida; morte por sangramento, quando não se conseguia estancar o sangue da parturiente ou do acidentado; morte de dor, quando o doente agonizava até o fim sem nada que aplacasse os seus ais; colapso, quando o doente que sofria do coração morria de ataque fulminante; congestão, se a morte tinha como origem algum mal do estômago. Doenças que podiam causar a morte: crupe, nó na tripa, coqueluche, meningite, paralisia, mordida de cobra e de cachorro doido. Doenças não matadoras, mas muito comuns e que deixavam marcas visíveis: lombriga e papo. Em quase toda casa havia pelo menos uma pessoa que tinha papo. Lombriga, então, era difícil encontrar alguém que não estivesse infetado.
            Uma das maiores dificuldades era quando morria um vivente, pois o sepultamento tinha de ser feito nas cidades de Bonfim ou Campo Formoso, distantes beira de oito léguas. A vizinha povoação de Gameleira, hoje Cristianópolis[1], já era dotada de cemitério, mas só os protestantes tinham acesso ao sepultamento naquele local. O pequeno arraial era fechado a outras denominações religiosas devido ao passado recente recheado de conflitos, envolvendo católicos e protestantes nos primeiros anos do século vinte, na cidade de Santa Cruz de Goiás. Inclusive, esses desentendimentos foram determinantes para o nascimento do povoado de Gameleira, local onde os protestantes expulsos de Santa Cruz se refugiaram de medo dos católicos.
E assim o corpo do morto tinha de ser carregado nos ombros, para receber sepultura digna em localidades distantes. Isto se o defunto fosse de família rica, pois, fosse pobre, era enterrado debaixo de uma árvore qualquer, sem reverência alguma, quando muito uma cruz feita a machado e fincada no chão, para não perder o local, em completo desrespeito aos princípios morais e legais, que não permitiam sepultamento de defunto a não ser em cemitério público.
            Sabe-se que naquela época as pessoas falecidas eram transportadas a pé, em banguês, resquícios ainda da escravidão, quando os escravos defuntos eram carregados em padiolas para as sepulturas cavadas em um lugar qualquer.


3. Antecedentes da povoação erigida em louvor a São Miguel Arcanjo

Conta-se que em 1920, mês de agosto, quando faleceu Manoel Pio, que a idéia de construir um cemitério para servir a comunidade começou a vingar.
Depois de matar um capado, o pretinho Manoel Pio, muito farturento e cuidadoso, saiu para o matinho ali mesmo na porta da sala, a fim de cortar um broto de imburuçu que seria colocado como proteção, debaixo do porco morto. Não havia lata para guardar a gordura. O costume era cortar o capado em pedaços, retalhar, salgar, enrolar e deixar guardado. Para o gasto diário, a cozinheira ia desenrolando a banda e cortando-as aos poucos, segundo a necessidade do momento.
No mato, ao dar cabo de sua obrigação, Manoel Pio descuidou-se e bateu com o facão no joelho, fazendo um corte profundo. Deu tétano e ele morreu logo. O velório já ia pelo fim da tarde, começo da noite. O morto devia ser enterrado ali mesmo, então não carecia pressa, poderia esperar o amanhecer. E além do mais, segundo a crença, não era permitido fazer enterro à noite. Podia atrapalhar o falecido a chegar ao céu.
Contudo, os amigos e os parentes entenderam que ele merecia coisa melhor. E assim, oito homens bastante animados partiram resolutos, conduzindo num banguê o falecido, saindo da Água Vermelha em direção a Campo Formoso, que era o local de destino. Pelos cálculos deveriam chegar no outro dia, ainda pela manhã, caso não houvesse nenhum contratempo. A viagem era longa e penosa, reservada somente a homens destemidos e fortes. E aconteceu que, no meio do caminho, chegando ao local denominado Fazendinha, quatro dos companheiros desistiram da viagem e da tarefa, deixando para trás os outros quatro viventes pasmos e enraivecidos, e um morto carente de sepultura.
Aqueles outros quatro valentes carregadores prosseguiram viagem assim mesmo. Já ofegantes, conseguiram aportar no Córrego do Pico, mais ou menos uma légua do Batã. Para surpresa geral, o velho Militão, conhecido de alguns do grupo, negou pouso aos visitantes, mesmo diante dos seus insistentes e comoventes pedidos.
— Nós tamo cansado e estropiado, Militão, antes da madrugada a gente desocupa suas terras – afirmava e pedia desolado Felipe da Costa, na qualidade de chefe da expedição.
— Não é por nada não, Seu Felipe, é que o povo diz que casa onde pousa defunto o dono morre assim que o defunto sai. Eu não acredito em superstição, claro que não, mas, também, pra que arriscar!
— Seu Menino, me desculpe, mas mesmo sendo rico e dono de muitas posses, fazenda boa e muito gado, o amigo não vai conseguir escapar da morte um dia – retrucava, já perdendo a paciência. 
— Ah isso é devera! Mas eu fico com medo de... Pode não ser verdade o que o povo diz, mas por via das duda... Sei lá!... O amigo hai de me entender e de me dar razão!
— Mas nós não vamos andar de a pé de noite com o defunto mais não. Essa coisa de que o dono da casa morre se o morto pousar nela é pura conversa fiada. Em todo o caso, com ou sem a sua permissão, vamos levar o pretinho pro paiol, que aí livra o amigo de morrer de morte de defunto, e resolve por hora o nosso problema. E tamos conversado!
Felipe da Costa insistiu, fechou questão e deixou o defunto onde queria, isto é, no paiol, mesmo a contragosto do dono da casa, sob a vigilância dos companheiros. E foi buscar recurso na fazenda de Joaquim Serafim, ali vizinho. Lá o tratamento foi diferente: atendimento com boas maneiras, banho quente e salmoura, pois que se achava aguado com o cansaço da caminhada. Jantou até fartar-se e levou comida para os três amigos que ficaram velando o morto. De lá para frente, de noite mesmo, o falecido foi levado de carro de bois, com a ajuda de Joaquim Serafim e dos filhos Sinfrônio e Ovídio Ferreiro. Chegaram a Campo Formoso já de tardinha.
O enterro foi muito difícil, pois o corpo já estava bem passado, fedendo demais, e como se tratava de gente pobre, sujeita a ser enterrada como indigente, precisava de autorização do Intendente Municipal. E aí que foi um deus-nos-acuda. Deu o que fazer para conseguir a permissão, porque o tal homem, sub-rogado na mais alta patente do lugar, não queria receber ninguém. Valeu a interferência de Joaquim Serafim, que era bem conhecido na intendência e amigo da autoridade.
Por causa desse fato, ganhou força a ideia da construção de um cemitério que viesse atender as necessidades da população. Felipe da Costa reuniu os fazendeiros, formando-se uma comissão, a fim de sensibilizar o Intendente de Bonfim e os dirigentes da Igreja, de onde o lugar era jurisdicionado, rogando-lhes que autorizassem a construção do reivindicado campo santo. O grupo seguiu viagem de madrugada, a cavalo, e só regressou no outro dia, com missão cumprida, mediante promessa das autoridades de atenderem o pedido o quanto antes.
Assim foi que no início do ano de 1923 foi autorizada a construção do cemitério. E em pouco tempo o campo santo foi construído, a custa de mutirões levados a efeito pelos moradores da redondeza. No local se encontra hoje a Praça da Bíblia. Prova disso está nos anais da Paróquia de N.S. do Bonfim, de Silvânia, onde se acham grafados os seguintes dizeres:

“Cemitério de Passaquatro
Archivou-se uma Provisão de Licença para construção e bençam de um cemitério no bairro Passaquatro desta Parochia” (6 de fevereiro de 1923)

Contava Benedito Pires Basílio que vários fazendeiros da época, dentre eles o próprio Benedito no tempo em que morou na Fazenda Canavial, ajudaram as comitivas que se formavam com a finalidade de dar sepultamento aos mortos da vizinhança, antes da construção do cemitério. Dificuldade a toda prova. Durante o trajeto, fazia-se constante revezamento entre os acompanhantes, para alcançar êxito no objetivo proposto. Quatro pessoas, a pé, ombreavam o banguê e pegavam a estrada. Os cavaleiros esporeavam os cavalos e iam esperar lá adiante, numa determinada distância suportável pelos caminhantes. Ali, substituíam os já cansados defunteiros, entregando-lhes os cavalos. E assim faziam até chegar ao destino. 
No caso de criança falecida era diferente. Certa vez morreu um menino de uns dois anos de idade, dali mesmo do Canavial, vítima de doença de crupe. Crupe e angina eram as doenças que mais matavam as crianças naquele tempo. Benedito e outros dois companheiros foram os encarregados de dar sepultura ao corpo do garoto, na cidade de Santa Cruz, distante umas seis léguas. O cortejo seguiu a cavalo, bem cedo, conduzindo o pequeno caixote contendo o inocente morto. De quando em quando revezavam, na hora que os braços sentiam cansaço. Chegaram já de tarde para desincumbir-se da missão.


4. O surgimento da povoação

                        Com certeza o cemitério foi o primeiro marco para o surgimento da povoação, visto que foi ele construído para sepultar as pessoas que morriam nas fazendas Passa Quatro, Água Vermelha, Aborrecido e outras próximas, face à enorme distância entre aquelas localidades e as cidades mais próximas, assim como à ineficiência dos meios de transporte.
                        Ali por volta de 1928, já pronto o cemitério cuja construção fora autorizada pela Paróquia de N. S. do Bonfim no início de 1923, e em volta dele algumas pouquíssimas casas, os fazendeiros da redondeza decidiram levantar ali uma povoação em louvor a São Miguel Arcanjo. E a referência que se dava à povoação já era o Rio Passa Quatro, razão pela qual, com o uso, o povoado passou a ser denominado pelo povo como “São Miguel do Passa Quatro”.
                        Diz-se ainda que Felipe Luiz de Carvalho, mais conhecido na época por Felipe da Costa, e sua mulher, dona Antônia Pinto de Carvalho (Dona Antoninha), ambos já falecidos, teriam adquirido as terras onde hoje se acha a cidade, doando-as à Igreja, para então erguer-se o povoado. Porém a aquisição teria sido apenas verbal e somente cerca de dez anos depois se cogitou de providenciar a documentação. Foi então lavrada uma escritura em manuscrito e a título particular, assinada pelas partes, em Goiânia-GO, no dia 19 de agosto de 1938, e levada a registro no cartório imobiliário de Silvânia no mês seguinte.
                        Dados constantes da certidão de registro: número, 4.201; denominação, Fazenda Passa Quatro, Mun. de Silvânia-GO; título de transmissão, Doação; adquirente, Diocese de Goiaz, representada pelo Exmº Sr. Arcebispo Dom Emmanuel Gomes de Oliveira; transmitentes, Amélio Rodrigues de Morais e sua mulher, dona Ludovina Ferreira de Morais; características e confrontações: “Uma parte de terras, dividida, contendo 1 (um) alqueire de campo e 1 (um) alqueire de cultura, situada na Fazenda Passa Quatro, deste termo, confrontando com terras pertencentes a Antônio Francisco, João Antônio de Carvalho, herdeiros de Felipe Luiz de Carvalho, pelo córrego das Vacas, com a Fazenda Alvorada, de Tobias Ferreira e outros; havida por permuta com João Militão de Lima e outros, por escritura pública. Consta mais o título que no terreno acima descrito já existe um pequeno cemitério com capela, devendo-se formar nesse terreno o Patrimônio de São Miguel. 
                        Pelos documentos arquivados na Paróquia de N.S. do Bonfim, em Silvânia-GO, na data de 29 de setembro de 1939, quando o Patrimônio foi oficialmente inaugurado com a primeira missa, a povoação já contava com umas vinte casas.


5. As referências de Sêneca Lobo

Todas essas informações se encaixam com justeza, quando se constata o registro feito por José Sêneca Lobo, em sua obra “Bonfim de Goiás, Minha Terra e  Minha Gente” em que o autor, na condição de  emérito historiador e servindo-se de suas experiências como Tabelião em Bonfim, conta a história de uma viagem que fez, ao povoado nascente, a qual, pela importância que representa no contexto da história que nos propusemos a contar, pedimos autorização para transcrever.

            “CEMITÉRIO DO PASSA QUATRO
               Ali pelo ano de 1939 o povoado e distrito de Bonfim, chamado hoje São Miguel do Passa Quatro, era constituído apenas do cemitério e algumas casinhas ao seu redor.
               O Cemitério havia sido construído há muito tempo para sepultamento dos habitantes das fazendas Passa Quatro, Água Vermelha, Aborrecido e outras próximas, em virtude da grande distância entre aquele bairro e a cidade de Bonfim, ou mesmo a de Cristianópolis. Era um problema sério o transporte de defuntos naqueles tempos - por meio de redes, cobertas ou lençóis amarrados num varal - que eram ombreados por duas pessoas, acompanhadas de turma de cavaleiros, fazendo-se o revezamento constante dos carregadores, dado o peso e a pressa da marcha, realizada geralmente durante a noite para aproveitar a temperatura. Com o sol quente durante o dia, era praticamente impossível de se realizar a marcha, não só do ponto de vista do cansaço do povo como principalmente pela rápida deterioração do cadáver.
No ano de 1939 o Guilherme Veloso Pereira, proprietário de um sítio próximo daquele local, resolveu de comum acordo com os fazendeiros locais promover uma festa com a celebração de missa campal no cemitério e outras promoções. Para isso, convidou o Arcebispo de Bonfim, Dom Emmanuel Gomes de Oliveira, o Prefeito Municipal, Dr. Alarico Gonzaga Jaime e outras pessoas. Os sitiantes sempre aproveitavam estes ajuntamentos para acertarem seus problemas de terras, compras, vendas, procurações para inventários etc., pelo que o tabelião Sêneca estava sempre presente.
               O meu veículo de condução nesse tempo era um fordinho, ano 1928, que eu comprara por quatro contos de réis do Zé Cândido Louza, compra que fiz graças a um empréstimo que o Plácido de Campos, farmacêutico local, intermediou com a Rosalina Cotrim, vendera bem sucedida na cidade.
               Não havia estrada de automóvel para o Passa Quatro e o roteiro se fazia pela estrada de Bonfim a Bela Vista, até a fazenda do Quinzinho Bonifácio, no Campo Alegre. Dali, tomava-se à esquerda, pelos campos, aproveitando estradas carreiras antigas, rodeando a cabeceira do Rio Preto, seguindo pelo chapadão, que era longo, plano e bonito, até ganhar a estrada geral de cavaleiros e carros de boi, na Lagoinha, pela qual seguia-se até o Passa Quatro.
               Na ida foi tudo muito bem, porque o Guilherme ia na frente, mostrando os desvios de cupins, buracos e outros empecilhos. Eram três carros: o do Guilherme, o que levava o Prefeito e o Arcebispo, e o meu, todos lotados.
               No Passa Quatro, missa solene na frente do Cemitério, discursos, promessas de rodovias até a sede, apoio ao futuro povoado que despontava promissor, muitas escrituras e contratos que eu lavrei, tudo encerrado com um jantar-churrasco ao ar livre.”


6. Primeira Missa. Inauguração Oficial do Patrimônio

            Embora os documentos silenciem a respeito de maiores detalhes, tem-se que, segundo fontes seguras, na data de 29 de setembro de 1939 foi fincada a pedra fundamental para a construção do prédio da Igreja. Consistia em uma pequena pedra de laje, de uns cinquenta centímetros, devendo estar localizada debaixo do piso cimentado do antigo prédio da capela, à frente e do lado esquerdo de quem se posiciona dentro dela e com frente para a rua.
Outra omissão do documento oficial é o cruzeiro da praça, que também foi erguido nesse mesmo dia, para se constituir não só num marco histórico do lugar, mas principalmente para simbolizar a fé, em testemunho visível de que a povoação nasceu sob o signo da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Segue transcrição fiel do registro existente na Paróquia de N.S. do Bonfim, de Silvânia-GO, a respeito da festa de inauguração do Patrimônio de São Miguel, bênção e lançamento da pedra fundamental da Igreja de São Miguel.

“PROGRAMA DA FESTA

Bênção Inaugural do Patrimônio de São Miguel (cemitério).
O Revmo. Sr. Pe. Vigário de Bonfim chegará de véspera, no dia 28 à tarde, para reza, sermão e confissões.
                               No dia 29, às 7h: Missa e comunhão geral; às  9 h: batizados; às 13h: chegada de S. Exa. D. Emanuel Gomes de Oliveira, DD. Arcebispo de Goiaz; às 14h: Benção do Patrimônio. Palavras de ocasião por sua Exa: às 14,30 h: Administração do Santo Crisma; às 16h:vVolta do Arcebispo e do Vigário para Bonfim.

A propósito dessa festa e importante inauguração do Patrimônio, fiz distribuir dias antes o seguinte comunicado:

P A S S A Q U A T R O

                Bairro da Paróquia de B o n f i m
                                                                        
                               29 de setembro de 1939.

Inauguração oficial do Patrimônio; bênção e lançamento da primeira pedra da Igreja de S. Miguel, por sua Exa., oO Sr. Arcebispo Dom Emanuel Gomes de Oliveira, servindo de padrinhos os Exmos. Srs. Dr. Alarico G. Jaeme, DD. Prefeito Municipal, Sr. Guilherme Veloso Pereira e srs. Tobias Evangelista Ferreira.
                                                             
COMISSÃO ENCARREGADA DA CONSTRUÇÃO DA IGREJA DE S. M I G U E L

Corpo diretivo: Snr. Guilherme Veloso Pereira, Tobias Evangelista Ferreira, Chico Domingos, Josias Saturnino Dias, José Teófilo, Benedito de Carvalho, Joaquim Vieira Machado, Joaquim Miguel. E os Srs.: Aurélio Rodrigues de Morais - Manuel do Pocidônio - Sebastião Bina - Cipriano Domingos - José Mariano - Joaquim Francisco - Antonio Francisco - Manuel Mateus - Joaquim Mateus - João Antônio - José Balbino - João Balbino - Antônio Marques - Manuel Ferreira de Assis (Neneco) - Manoel Adolfo Camenacho - Sebastião Tobias - Alonso Romão - José Pires - Vicente Estevão - Perciliano Avelino de Godói - Deodoro Luiz Brandão - Sanches Nepomuceno Pereira - Joaquim dos Santos - Antônio Rosa - Juventino Paulino - Gersino Lelis - Manuel Luiz de Carvalho - Manuel Bento de Carvalho - João Militão de Lima - Manoel Verônica Lima.
Nomeando esta comissão, confio plenamente na eficiência ativa e generosa contribuição dos seus membros, e espero poder inaugurar a Igreja de S. Miguel no dia 29 de setembro do próximo ano de 1940.
Bonfim, 18 de setembro de 1939. 
               Pe.  Pedro Pinto Ferreira
               Vigário.

A festa foi muito concorrida, animada e piedosa. Estiveram presentes o exmo. Sr. Arcebispo, Dom Emanuel Gomes de Oliveira, e o DD. Prefeito de Bonfim, Dr. Alarico F. Jaeme, os  quais tiveram recepção condigna, festiva e barulhenta.
A bênção e inauguração da Igreja foi, por assim dizer, o começo oficial do Patrimônio, Povoado, ou mesmo, futura cidade de S. Miguel.
Ajudou muito nessa iniciativa o sr. Guilherme Veloso Pereira, fazendeiro do lugar; proficiente engenheiro agrônomo, traçou ele o plano urbanístico de S. Miguel. Nesse dia da inauguração já se via o traçado das ruas, contando-se ao todo umas vinte casas. Devo também destacar a cooperação eficiente dos srs. Moisés Roriz, de Vianópolis, Chico Domingos e Tobias Ferreira, moradores do lugar”.






[1] Na edição anterior, arrolamos Cristianópolis como local onde os mortos podiam ser sepultados (p. 37). No entanto, pesquisando melhor o assunto, mormente depois de escrever a história daquela cidade, com o título de “Cristianópolis, uma cidade que nasceu da fé”, fomos forçados a mudar o contexto para adequá-lo aos moldes da informação precisa e verdadeira.


           Capítulo III

                          O PATRIMÔNIO DE SÃO MIGUEL,
                      SUA GENTE, SEUS USOS E COSTUMES


1. As diligências de Sêneca Lobo

            De outras referências feitas por Sêneca, na obra citada, quando cumpria diligências de ofício, e que muito enriquecem os nossos conhecimentos a respeito de São Miguel do Passa Quatro, onde ele fala de gente da época, dos feitos, dos lugares, da qualidade das terras etc., transcrevemos alguns trechos configurados nos seguintes episódios: Diligência ao Passa Quatro e O Espigão Mestre.

“DILIGÊNCIA AO PASSA QUATRO
Calixto Joaquim de Carvalho era um dos fazendeiros bem conceituados, considerado um dos patriarcas da família Carvalho, largamente difundida pela região do Buriti do Passa Quatro, na zona sul da velha cidade de Bonfim.
Essa zona limitava-se com os municípios de Santa Cruz, posteriormente com Pires do Rio, Cristianópolis e Bela Vista de Goiás.
               Região das mais desenvolvidas do município de Bonfim, pela fertilidade de suas terras, elevada percentagem de culturas de primeira, sobre campos cerrados, também considerados ótimos em pastagens e madeiras, como vinhático e outras, próprias para cercas de arame.
               Abrangia as fazendas Água Vermelha, Aborrecido, Tombador, Guarirobal, Tamboril e o Passa Quatro, esta a maior de todas.
               As minhas primeiras relações com essa região se fizeram através do patriarca já nomeado, em consequência da minha função de tabelião, aí pelo ano de 1934/35, quando atendi ao seu primeiro chamado para lavratura de escrituras de compra e venda e procurações para inventários”

                        Esse fazendeiro mencionado por Sêneca, de nome Calixto Joaquim de Carvalho, acabou mais tarde tendo dois netos diretamente envolvidos na primeira administração municipal: Aparecida Pires de Oliveira (Cotinha), que foi a primeira Primeira-Dama, e Valdivino Inácio de Carvalho, um dos nove primeiros vereadores.

“O ESPIGÃO MESTRE
               A Fazenda Água Vermelha, do Município de Bonfim, na sua zona sul, teve e ainda tem, destacado papel na economia municipal, pelas suas características e qualidades das terras.
               Ali residiram e ainda residem fazendeiros com importantes ações na comunidade, pelo progresso que trouxeram à região e pelo concurso ao desenvolvimento geral do município. O Candinho Leão tinha uma fazenda boa, à beira do Ribeirão Água Vermelha, dotada de boas instalações para aquele tempo, bons currais, engenho de cana, serraria de madeiras etc.
               No ano de 1927, logo que fui nomeado escrevente de cartório, participei de um trabalho do Dr. Álvaro Pacca, na divisão da fazenda Passa Quatro, requerida por Moisés Joaquim de Carvalho.
               Em julho daquele ano, empreendemos a viagem da sede municipal até a fazenda, mas, para alcançá-la em automóveis, tivemos que dar a volta por Bela Vista e, dali, pela estrada da Fazenda Arapuca, de propriedade de Aurélio Rodrigues de Morais que, mais tarde, viria ser meu sogro.
               É que não havia rodovias municipais naquele tempo, mas somente as de ligações entre algumas cidades aqui do sul do Estado. No norte, então, é que nada existia parecido com estradas de automóvel.
               Na Fazenda Passa Quatro, ficamos dezoito longos dias, para concluir a entrega dos quinhões aos condôminos, dado o número elevado dos mesmos. Hospedados na casa do promovente já citado, de acomodações precárias, toda aquela gente: Juiz de Direito, Promotor de Justiça, Advogado, Arbitradores, Escrivães, Oficial de Justiça, além do agrimensor e seu auxiliar”.

                                              
2. Proprietários rurais no ano de 1920, segundo dados do recenseamento do Brasil

                        Seguem-se número de ordem, nome do proprietário e a denominação da propriedade:
 01- Joaquim Moura                           -              Faz. Rio Preto
 02- Dionísio Vieira da Mota             -              Faz. Rio Preto
03 - Francisco Lourenço Moreira   -              Faz. Rio Preto
                               04- Antônio Vieira da Mota              -              Faz. Rio Preto
                               05- José Bento de Carvalho            -              Faz. Rio Preto
                               06- Joaquim Vieira                            -              Faz. Buriti
07- José Joaquim de Carvalho       -              Faz. Buriti
08- Manoel Bento de Carvalho       -              Faz. Buriti
09- João Anastácio                           -              Faz. Buriti
10- Francisco de Assis Leite           -              Faz. Buriti
11- José Crispim Xavier                   -              Faz. Água Vermelha
12- Dionísia Luísa                             -              Faz. Água Vermelha
13- Joaquim Romão                         -              Faz. Aborrecido
14- Vitorino Ribeiro                           -              Faz. Aborrecido
15- Alexandre de Assis Leite          -              Faz. Passa Quatro
16- José Lourenço Xavier                               -              Faz. Passa Quatro
17- Francisco da C. Almeida           -              Faz. Passa Quatro
18- Pedro L. de Aleluia                     -              Faz. Passa Quatro
19- Pedro B. de Alcântara                               -              Faz. Passa Quatro
20- Graciano J. Cunha                     -              Faz. Passa Quatro
21- Cesário G. Cunha                      -              Faz. Passa Quatro
22- Manoel P. Gonçalves                -              Faz. Passa Quatro
23- Joaquim F. da Aleluia                               -              Faz. Passa Quatro
24- Manoel da Costa Brandão        -              Faz. Passa Quatro
25- Modesto C. da Cunha                               -              Faz. Passa Quatro
26- João Militão de Sousa                               -              Faz. Rio dos Bois
27- Adelôncio Batista                        -              Faz. Rio dos Bois
                                  
3. Moradores do Patrimônio na década de 1950

                        A primeira casa construída em Passa Quatro foi a da Marianinha, feita por Guilherme Veloso; a segunda foi erguida por Antônio Rosa e hoje pertence a Miguel Tobias.
                        Otacílio Batista foi quem levou o primeiro automóvel para a povoação: era um “Jeep”. A primeira bicicleta foi levada pelo Israel da Costa, procedente da cidade de Goiás.
                        Segue abaixo, em ordem alfabética, a relação das pessoas que residiram em São Miguel do Passa Quatro, no decêndio 1950/1960:

  1. Abel de Souza (Belo), a irmã Maria Piedade, e os filhos Francisco de Souza (Chiquito, foi vereador) e Aparecida
  2. Agenor Fernandes Lemos e dona Otília, pais de Valter (Telo ou Telinho) e Telma (Titinha)
  3. Alexandre e dona Bárbara, pais de Geralda, Pedro Leite, Antônio Leite, João Leite
  4. Almiro e Romana, pais de Lili, Cota, Jair, Geraldina
  5. Antonio Cazuza de Siqueira e dona Maria Alves, pais de Maria das Dores, Zélia, Deodoro, Luiz, Maura, João
  6. Arcênio Ribeiro (Senito) e Tereza, pais de Ana, Pedro, Maria Cristina, Joaquim, Olívia, João, Paulo, Flávio, Flaviana
  7. Benedita Elias, mãe de Maria Elias (que era mãe de Dito Elias, Antônia, Aparecida, Maria Estréia), Ana Elias (que era mãe de Teleta, Divino, Zezinho e Geraldinho), Geralda Elias (que era mãe de Antônio Facão, Divino e Ditinho), João (Curiango), Sebastião Elias
  8. Benedito Marra (Marrinha) e os filhos Margarida, Divino, Benedita, Lia, Ivanilde, Tião Índio, Tereza
  9. Benedito Mateus e dona Manoela, pais de José, João, Geraldo, Maria, Sebastião, Aparecido, Emivaldo, Denivaldo, Anísia
  10. Carlos da Silva Gama (Carrim) e dona Nega, pais de Maria Abadia, Clara e Nilson
  11. Carolina Fernandes e Maria José Fernandes
  12. Custódio da Carolina e dona Vanda, pais de Altair e Menezilda
  13. Custódio Jacinto Lemos e dona Maria Antônia, pais de Sebastião (Sação) e Ilda
  14. Dionísio e dona Manoela, pais de Valdivino (Negrim), João (Bazé), Benvinda, Francisco, José, Sebastião, Maria, Antônio
  15. Dona Generosa e os filhos Sossó, Noêmia, Eva, Tuca
  16. Dona Rita e os filhos: Leonel e Ditim Chaga.
  17. Dona Sinhana, mãe de Geraldo, Maria, Catarina, Divina, Luzia
  18. Dona Vitalina e os filhos: Valdivino, Nelson, Aparecida e Iolanda
  19. Emídio Faleiro e dona Alzira, pais de Inês, Romão, Bárbara, Fiúca, Tuquinha, Maria e Joana do Iagiba
  20. Família da dona Bárbara, mãe de Levi e Fiquito
  21. Família de Abel Fernandes Xavier e dona Nega, pais de Paulo Edson, Cleuza e Neuza
  22. Família de Alcides Pereira de Castro e dona Otacília, pais de Silvio, Anísia, Lourdes, Hélio, Solon, Helvécio, Terezinha, Vilma e Janete
  23. Família de Artilino e Maria Augusta, pais de Antônio e Maria
  24. Família de Azor e Ludovina, pais de Jeová, Quinca, Fátima, Ana Maria, Benigna, Mariquinha, Maria Gorete, Álvaro, Miguel
  25. Família de Bilico e dona Maria do Rosário, pais de Dorvalino, José, João, Benedito, Natalina, Gasparina
  26. Família de Catita: Maria da Luz (Nega Catita, casada com Carrim), Maria Rosa (Neném Catita, casada com João Preto), Olívia Catita, Antônio Catita, José Catita, Nego Catita, Emirene Catita...
  27. Família de Érico Josué Meireles e dona Berenície, pais de Kleber, Cleone, Cleonice e Cleide
  28. Família de Evandro Vieira Machado e Ana, pais de Gilberto, Paulo César e Salete
  29. Família de Francisco Tomás de Oliveira (Chiquim Meleta) e dona Flauzina, pais de Aramísio (Santo), Maria Filomena (Bita), Colandi, Geni, Adair (Lulu), Leila, Sebastião
  30. Família de Germano e dona Ambrozina, pais de Manoel Germano
  31. Família de Heitor Fernandes e dona Toca, pais de Maria do Danda, Antônio, Tereza, Aparecida, Águida, Miguel, Vânia, João Bosco, Magninho
  32. Família de Horácio Cecílio Ceciliano e dona Totó, pais de Jair, Dina, Emelície, Geraldina, Boanerges e Rui
  33. Família de Jaeme Francisco Fagundes e dona Elvira, pais de Valter, Ataíde e Jaeminho
  34. Família de Joaquim Adriano e dona Maria, pais de Adão, Antônio, Jesus, Benedita, Inácio, Maria e Antônia
  35. Família de Joaquim Fernandes de Oliveira e dona Esmélia, pais de José Orlando, Claudemiro, Abel, Regina, Maria Fernandes, Osvaldo (Vadim) e Berenície
  36. Família de Joaquim Luiz e Natalina, pais de Antônio, Donizete, Ondina, Maria das Graças, Londina, Manoel, José, Cleolúcia
  37. Família de José Borges da Silva e dona Neném, pais de Coldeci e Maria Venina
  38. Família de José Pereira de Castro e Perciliana, pais de Sebastião, Afonso, Pedro, Zezico, Maria do Felismino, Ana, Tonica, Terezinha, Isabel
  39. Família de Júlio Teles e Regina, e os filhos Ilton, Aparecida, Ivone, Domingos, José Antônio, Vera
  40. Família de Lino José de Carvalho e dona Maria, pais de Mário e Maria
  41. Família de Manoel Marçal e dona Nega Marçal, pais de Antônio, Neném Marçal, Jovita, Daniel, Elogina, Olinda e Jaeme Marçal
  42. Família de Manoel Verônica Pinto e dona Maria Cândida de Jesus, pais de Jorge, Delcides, Levi, Benedito, Geraldinho, José Verônica, Joãozinho, Senito, Maria (mãe do Tião Preto)
  43. Família de Otacílio Batista e dona Olívia, pais de João, Joaquim Afonso e Marcelo
  44. Família de Saint’Clair (Sancré) e dona Nicácia, pais de Adjunio, Ernestina (Santa), João Rodrigues (Danda), Jerônimo (Pinina), Maria dos Anjos (Tuta), Maria Natividade (Tela), Abdom e Antônio Rodrigues (Bebé)
  45. Família de Sebastião Bino e dona Dorcelina, pais de Antônio Bino, Maria e Geraldo Bino
  46. Família de Sebastião Ferreira e dona Ritinha, pais de Xamom, Iron, Fátima, Nilva, Maísa, Edson, Elon, Idam
  47. Família de Sebastião Gonçalves da Silva e dona Maria Fernandes da Silva, pais de Elson (primeiro prefeito), Ana Maria, Ivan, Vânia, Geovando Magno, Odete e José Antônio
  48. Família do Italco e dona Candinha, pais de Washington (Vasentom), João, Mariana e Luzia
  49. Família Tavares, constituída pelos irmãos: Pedro Tavares, pai de  Benedita; João Tavares, casado com dona Rita, pais de Benedito, Luiz, Maria, Geralda e Antônia; José Tavares, casado com dona Maria (Grossa), pais de Luzia, Maria José, Angélica e Sebastião; Maria da Luz Tavares, casada com Antônio Sebastião de Oliveira, pais de Ilídio, Manoel, Carlos, Sebastiana, Maria, Aparecida; Maria Isabel, casada com Antônio Inácio, pais de Laudivino, Maria, Tereza, João, Vanderlúcia; Luzia, casada com Juvenal, pais de João Manoel, Joaquim, Sebastiana, Tereza, Onesma; e Geralda (Geraldona), solteira
  50. Firmino Reginaldo(Cabaça) e dona Ambrósia, pais de José, Sebastião, Geraldo, Maria, Ana, Rosângela
  51. Gino e os filhos Sanches, João, José, Miguel (Lanterna), Ana, Benedita
  52. Hermelino Ribeiro de Aleluia e dona Carmem, pais de Jeovando, Aparecida, Toninho, João, Deusdete, Vitorino, Nelson
  53. Israel da Costa e dona Maria, pais de Antônio, Felipe, Ézio, Inácia, Enilza, Enézia
  54. João Pires de Oliveira e dona Antônia, pais de Elias, Ivo, Calixto, José, Maria, Terezinha, Marta, Marcia, Gesner
  55. João Rodrigues e dona Rosa, pais de Florentino, Estevaldo, José, Antônio, João (hoje Frei João), Ana, Lucineide
  56. José Anastácio de Carvalho (Zé João) e dona Rita, pais de Ivanides, Alípio (Vereador) e Florípio (Fefé, Vereador e Vice-Prefeito por Silvânia)
  57. José Arnaldo Batista e dona Ivani, pais de Deni, Luci, Lucivaldo,  Marly, Demivaldo, Clarivaldo, Pelágio, Clari, José Ronaldo, Derlivaldo, Derli, Kênia, Kenivaldo, Marta, Liliam, Marlivaldo
  58. José Barbosa (Barbosinha) e dona Benedita, pais de Otília, Maria e Luzia
  59. José da Honora
  60. José Firmino e dona Mundica, pais de Jerônimo, Miguel, Lucia, Terezinha, Corina, Rita
  61. José Paixão e dona Maria dos Anjos, pais de José Roberto, Humberto, Maria Lúcia, Maria Terezinha
  62. José Patrício de Carvalho e dona Cirila, pais de Terezinha
  63. José Peixoto (Peixotinho)
  64. Lázaro Marceneiro (Bem), a esposa Nenzica e as cunhadas Nenza e Nenzona
  65. Manoel Luiz e dona Maria, pais de Sebastiana (Lourdes do Jair), José (Zezinho), Manoel, Joaquim, Terezinha
  66. Maria Andrade e Chicão, pais de Tereza, Maria Felipe, José
  67. Maria Angélica (Ingerquinha), Conceição e Maria Escolasca
  68. Moisés Roriz e Odorico
  69. Pedrão (Dentista) e Maria Lucinda
  70. Perciliano e dona Maricota e as netas Aurora e Luzia
  71. Tobias dos Santos Silva (Tobiinha) e dona Maria Cândida, pais de Maria Aparecida (Negrinha), Divina (Tuca), Rosita, Zulmira, Laudivino, João Miguel, Delcides (Dê) e Maria de Fátima.

            Esclarece-se que essa relação é apenas dos moradores do povoado, sem a zona rural. Pedem-se desculpas se porventura alguém ficou de fora da lista acima. Não foi de propósito. A intenção era a de mencionar a todos. Eventual omissão foi em decorrência de falta de melhores informações a respeito.
Ressalte-se também que, durante a década de cinquenta, muitas das pessoas acima relacionadas transferiram residência para outras localidades, ao mesmo tempo em que outras tantas chegaram, já mais para o final do decêndio. O certo é que todas elas poderão sentir-se orgulhosas de terem contribuído de algum modo para a edificação do Município de São Miguel do Passa Quatro.
Portanto, o respeito e a admiração do autor por todas essas pessoas pioneiras e benfeitoras, sem as quais certamente este Município não existiria.
                        Inclusive, foi por respeito à memória dos nossos antepassados que no início dos anos oitenta, estando de passagem por esta cidade e constatando o desleixo das autoridades para com o cemitério (velho), onde o mato já havia substituído os pouquíssimos túmulos ainda existentes, e havendo no local montes de areia e tijolos para construção de casas particulares, saí imediatamente em defesa da preservação do nosso cemitério, onde jaz a memória da povoação pioneira.
Ameacei entrar na justiça, recorri até o vigário, revolvi meio mundo e, finalmente, os invasores recuaram e desistiram de erguer casas residenciais sobre as inúmeras sepulturas dos nossos parentes, amigos, benfeitores e pioneiros de São Miguel do Passa Quatro. Do contrário, mais uma memória da nossa cidade teria sido deletada naquela oportunidade, a exemplo do que aconteceu, em 1998, com o nosso saudoso “Sobradinho da Praça”, demolido criminosamente sob o argumento de que estava muito velho e “caindo”, como se não existisse “restauração” para recuperar os valores culturais na iminência de deterioração.


4. Os festejos

            Os festejos ocorriam duas vezes por ano e constituíam-se no maior acontecimento do lugar. No final do mês de maio ou início de junho de cada ano, após as colheitas, realizava-se a festa em louvor a São Sebastião e Santa Terezinha. Mas a festa tradicional, de maior movimentação, esperada por todos, era a de São Miguel Arcanjo, padroeiro da cidade, e Nossa Senhora Aparecida, que acontecia no fim do mês de setembro de cada ano, por causa do dia de São Miguel, comemorado no dia 29.
            Era a certeza da vinda do padre, coisa bastante rara, e a oportunidade para o congraçamento com as pessoas da zona rural e com os velhos conhecidos que moravam fora.
A festa começava sempre numa quinta-feira, com a alvorada. Muitos fogos, muita música, muito barulho, muita cachaça também. Lembro-me de uma vez que conseguiram levar a Banda de Música de Silvânia, liderada pelo Cabo João. Foi uma surpresa tremenda! Toda a população do Arraial levantou de madrugada para acompanhar a Banda, ao som de dobrados excitantes e comovedores.           
Quando o Ovídio Meireles foi festeiro, ele conseguiu levar a Congada de Santa Cruz de Goiás para abrilhantar os festejos, o que foi um feito extraordinário para a época. Os componentes da congada eram na sua maioria de cor negra, vestidos com uma indumentária própria e à caráter, portando instrumentos musicais constantes de sanfona (pé de bode de 8 baixos), viola, cavaquinho, pandeiro, reco-reco e caixa surda. À frente, a rainha, com vestimenta em grande estilo e luxo. Repertório rico, com cantigas dos escravos e modas populares. Esse grupo alegre percorreu todas as ruas da cidade e terminou sua participação na festa acompanhando a procissão, no final.
O sucesso foi tanto que, passada a festa, nós, os moleques daquela época, organizamos a nossa congada particular. O Fiquito tocava violão, eu e o Joaquim Luiz cantávamos, outros tocavam instrumentos diversos. Todas as noites fazíamos a nossa apresentação no Largo da Igreja. Enchia de gente. Só acabou quando decidimos cobrar ingresso. Aí o povo sumiu.


5. O leilão das canas

            Os primeiros dias de novena eram fracos. Pouca gente, prendas baratas... Não passavam de algumas pelotas de sabão, um saquinho de farinha, outro de polvilho, umas duas guarirobas, e só. Sábado e domingo, no entanto, eram ótimos. O Coreto quase não cabia as doações dos fiéis. E aí chegava a alegria da garotada: as canas! Durante o leilão o leiloeiro de vez em quando anunciava:
“Num raleia não, meninada. No final vou gritá as cana!”                                       
A molecada esperava ansiosa. Quando acabava de leiloar todas as prendas, chegava finalmente o momento tão desejado pelos baixinhos.
            “E chegou a hora dos menino. Óia o montão de cana! Tem cana comum, cana argentina... Tem até cana de cavalo, aquela dura que só menino chupa, porque tem dente bão. Vou gritá tudo de uma vez. Só as cana caiana que não. Cana caiana faz mal pra menino, dá caganeira. Mas cuidado pra não machucá, viu! Guarda os canivete, os quicezinho! Oh! Não pode cortá a cana com faca não. É perigoso. Só vale quebrá  no muque. E tem uma coisa: quem brigá não leva cana não. Pode luitá à vontade, mas sem briga! Biliscá e mordê também é proibido: vai que o companheiro enfesa e aí, ó...! Depois vai recramá que fio de pobre não tem sorte! Xingá daqueles nome cabeludo também num convém não. Tá muito perto da Igreja!”
E continuava:
            “Tá sem lanço as cana! - insistia o leiloeiro. Quem vai arrematá pros meninos?! Seu Joaquim é o protetor da molecada. Quanto vale as cana, Seu Joaquim? Cinqüenta centavo! Cinquenta centavo é pros menino chupá! Um cruzeiro os menino num vai vê nem o cheiro! Um e cinqüenta é dos menino mesmo! Dooois cruzeiro é pro Mané Tatu chupá sozinho e os outros ficá espiando e morrendo de inveja! Ô Sossó, sai do meio dos menino que ocê não é menino mais não. Já tem até barba! Dooois e cinqüenta é dos menino mesmo! Dois e...   -   Cuidado, menino! Sai de perto do lampeão que senão ocê encosta nele e aí ele cai e nóis fica no escuro.  -  Dooois e cinqüenta! Haja quem mais dê!  -  Oh gente! Vou avisar uma coisa:  cana é só pra menino. Ocês tão veno, tem aí uns cinqüenta capiau: uns mais crescidinho, outros rapezinho ainda... Quando eu jogar as cana, não pode entrar gente grande na confusão não, porque pode machucar os petitico. Marmanjo que quiser chupar cana vai prantá. Ou então vai trabaiá e comprá...   -   Quanto que eu tava gritando mesmo? Ah! Dois e cinqüenta é dos meninos! Doois e cinqüenta dou-lhe uma! Dois e cinquenta dou-lhe duas! Dois e cinqüenta dou-lhe...três. Pode marcar pro Seu Joaquim Fernandes.”
            Era o momento da farra da molecada:
            “E agora eu vou jogar as cana. - sentenciava o Bastião Ferreira. Raleia, moçada. Deixa só os moleque. As muié é bom subir na carçada da Igreja pra ficar mais longe e num ter perigo de machucá. Me ajude aqui, compadre Azor, esse mói de cana tá muito pesado, é cana demais. Lá vai, meninada! Lá vai...! Lá vaiii...! Viche, só vê poeira! Cuidado pra não machucá!”
            Sebastião Ferreira era o leiloeiro oficial. Possuidor de uma voz forte, boa dicção, educado. E apesar de não ter tido oportunidade de estudar, era detentor de uma sabedoria acima do comum, especialmente no que diz respeito ao domínio de massa. E era, antes de tudo, um astuto comerciante, quando subia ao Coreto da Igreja para vender as prendas em leilão. Ele transmitia simpatia, ao contrário de muitos leiloeiros de hoje que querem se impor pela arrogância, pelas ofensas disfarçadas às pessoas, tornando-se antipáticos.
           

6. O episódio do padre e o puteiro

O professor José Arnaldo era quem tirava o terço, entoava os hinos em louvor aos santos festejados e preparava toda a parte religiosa. O padre só chegava no dia da festa.
            A expectativa em torno da chegada do sacerdote era muito grande, porque se ele não viesse a festa não se realizava. Para muitos, festa mesmo era só depois da chegada do vigário.
            Certa vez o padre chegou - na data marcada, como de costume - e de imediato ficou sabendo que a Dona Branca estava de rancharia  com seu cabaré montado. Era verdade, mas ninguém teve a coragem de tomar a iniciativa de avisá-lo.
- Quem sabe ele nem ficava sabendo, afinal o sol nasceu para todos. - raciocinavam as ilustres autoridades.
            Ledo engano. O meio de comunicação mais eficiente de toda cidade pequena sempre foi a futrica. Por que deveria ser diferente naquela oportunidade? Ademais, pessoas interessadas no mexerico não faltavam. As esposas estavam fervendo de ciúmes de seus maridos, pois a mercadoria apresentada pela meretriz instalada na casa cedida pelo Manoel Verônica era de excelente qualidade.
            O sacerdote nem desmanchou as malas. Queria porque queria voltar para Silvânia. E se o padre fosse embora não haveria festa. Além do mais corria-se o risco de o lugar ser espraguejado e até mesmo excomungado.
Foi um alvoroço danado na corrutela. Os festeiros, Pedro Pereira de Castro e Dona Maria de Lourdes Castro, ficaram aflitos diante da real possibilidade de não haver festa. Os barraqueiros torciam e pressionavam para que a festa prosseguisse, com medo já do prejuízo. As senhoras da cidade, tomadas pela proteção de seus maridos, exigiam que Dona Branca fosse expulsa imediatamente. Os homens, no entanto, diante do impasse, diplomaticamente (ou safadamente) optavam pela negociação, em defesa da não-radicalização, porque no fundo desejavam as duas coisas, isto é, a presença do vigário, em nome da continuidade do evento religioso, e ao mesmo tempo a permanência das visitantes, as “primas”, como eram chamadas as prostitutas, como garantia dos bons divertimentos. Mesmo porque a chegada de padre e de mulheres de vida livre no lugar eram dois acontecimentos raros. E por outro lado, havia aqueles que defendiam a tese dos cinco pês como condição para a festa perfeita e completa: Padre, Povo, Pinga, Puta e Polícia, ao que o Cabo João, policial responsável pela segurança dos festejos, acrescentava mais um: pau na moleira dos bandidos!
            O sacerdote, por sua vez, fechou questão: “Ou elas ou eu!”
Coube então à Comissão da Igreja, com responsabilidade direta na administração da Capela e indireta no bom andamento da festa, a tarefa delicada de convencer Dona Branca a regressar à sua cidade de origem. Fomos eu, muito jovem, quase adolescente ainda, na qualidade de secretário da dita Comissão; o Pedro Calixto, já bastante maduro e respeitado, por ser o tesoureiro; e o Ubaldo Vieira, fazendeiro sério e correto, que era o presidente.
            Descemos os três rua a baixo, sob os olhares curiosos dos romeiros que se achavam bastante divididos com relação aos objetivos da nossa empreitada. De vez em quando se ouviam alguns gracejos aqui, outras piadinhas ali, mas conseguimos manter a pose e chegar triunfantes ao local do crime.
Surpreendentemente fomos muito bem recebidos. Tratava-se de pessoas educadas e simples, que entenderam perfeitamente a nossa posição e se prontificaram a atender incontinenti as exigências que o momento pedia. Apenas um bêbado ali escorado na porta da cozinha quis insurgir-se contra nós, reclamando o seguinte:
- Se as comadre for embora nós vamo também, uái! Pra mode que aí a festa acaba! Manda esse padre ir tomá ó!!!...
Porém, aquelas nobres senhoras pediram-nos desculpas e a conversa chegou a bom termo.


7. Outras prendas do leilão

            Os outros dias da novena, como segunda e terça da semana da festa, eram também de pouca movimentação. Quarta-feira já era melhor. O leilão era mais agitado por causa de certas brincadeiras do Sebastião Ferreira.
            Havia algumas prendas, ofertadas dentro de envelopes, que eram chamadas de “segredo” e dessa forma eram leiloadas. Geralmente acompanhadas de um bilhetinho com oferecimento a alguma pessoa. E eram ali colocadas, ou pela namorada ou por algum amigo (da onça), ou mesmo por alguém que queria apenas brincar. O bom da brincadeira era mesmo descobrir o conteúdo do envelope e o nome de quem o subscrevia. E o Sebastião Ferreira aprontava um salseiro em cima dessas oferendas, que acabava empurrando a mercadoria por preço exorbitante. Mas quem queria deixar outro indivíduo arrematar a prenda para descobrir o tal segredo que lhe era endereçado?            
            - E vai começar o leilão outra vez, gente. - apregoava o Bastião Ferreira. São Miguel Arcanjo e Nossa Senhora Aparecida que nos ai de proteger de todo mal: da inveja, das calúnia, das briga, da bebedeira, da peste e da fome... amém!
- Eu tenho aqui uma dúzia de ovos com um bietinho. - esclarecia o leiloeiro. Lê pra nós, compadre Azor! É pro Zé Calixto chocar e tá com lanço de um cruzeiro. Ummm cruzeiro, o Zé Calixto vai chocar os ovos! Um e cinqüenta, o Zé Calixto diz que ele não vai chocar, é o compadre Negrim quem vai chocar esses danado! Dooooois cruzeiro, o compadre Negrim não quer mexer com isso não, é o Jararaca que choca! Já pensou, Abel, ocê magricelinho desse jeito sentado nesses ovos! Num vai tirar pinto de jeito nenhum. Doooois e cinqüenta, é pro Otacílio Batista chocar, que ele que é rico e tem tempo pressas coisa! Trêêêis cruzeiro é pro Abílio agachá em cima deles! Haja quem mais dê, gente! Três cru...Quaaaatro cruzeiro é pro Vartão do Jaeme chocá lá na roçada de pasto que ele pegou do Mané Paixão! Quaaaatro e cinqüenta é pro Antonio Catita! Ciiiinco cruzeiro é o Faezão quem choca! Cinco cruzeiro, dou-lhe uma; cinco cruzeiro, dou-lhe duas; cinco cruzeiro, dou-lhe...três.


8. O serviço de alto-falante do Dito Bode
                       
            Na sexta-feira da festa chegava o Dito Bode com seu serviço de alto-falante movido a motor diesel. Era um Deus nos acuda. De vez em quando a rotação do tal motor baixava e o disco desafinava. Virava só graça.
            O Dito cobrava pelos oferecimentos de música. Era sua fonte de renda, para manter aquela sua parafernália. Era o locutor apropriado para tais momentos. Com sua voz um tanto rouca e estridente fazia a festa da juventude, brincando com um, com outro e divertindo a todos.
            - E agora vamos ouvir “Bebendo nos Bares”, na interpretação maravilhosa de Praião e Prainha. Essa bela música alguém oferece a alguém e esse alguém sabe quem. Se por acaso não souber, não é problema meu. Só posso dizer que é alguém muito apaixonado. Preste atenção!
            Outra música das bastante executadas era anunciada pelo Dito Bode:
            - Ouviremos agora “Chega de Sofrer”, na bela interpretação de Silveira e Barrinha. Essa música a letra “P” oferece para a letra “A” com muito amor e carinho.
            A procissão da festa, que saía às dezoito horas do domingo, velas acesas, terço, ladainha, andores conduzindo as imagens de São Miguel Arcanjo e Nossa Senhora Aparecida, organização do posicionamento dos fiéis, tudo passava pela observação, liderança e animação microfônica do Dito Bode. Até os fogos.
- Cuidado com os foguetes! Solta pro alto pra não cair em cima do povo!
            Na chegada da procissão, antes mesmo do sorteio do novo festeiro, para o ano seguinte, os “Vivas”. O Dito comandava e a multidão respondia, com fervor:
            - Viva Nosso Senhor Jesus Cristo!
- Viva!
- Viva São Miguel Arcanjo, o padroeiro do lugar!
- Viva!
- Viva Nossa Senhora Aparecida, nossa Mãe do   Céu!
- Viva!
- Viva o padre vigário!
- Viva!
            - Viva os festeiros!
- Viva!
            - Viva o povo aqui reunido!
- Viva!
            Todos:
            Mãezinha do céu, eu não sei rezar
            Eu só sei dizer, que eu quero é te amar
            Azul é teu manto e branco é teu véu
            Mãezinha, eu quero te ver lá no céu.



              Capítulo IV

             ASPECTOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS


1. Dados sociais e econômicos do Patrimônio de São Miguel nos anos 50

·         Barbeiros: Agenor Fernandes Lemos (Agenorinho) e Lino José de Carvalho;
·         Benzedor: Francisco (Chico Baiança);
·         Capadores de porca: José Patrício de Carvalho e José Teófilo de Lima - Mais tarde: Manoel João de Carvalho, Pedro Joaquim de Carvalho (Pedro Calixto);
·         Capela: 1 (uma);
·         Carreiros: Carrim, Bilico, Antônio Cazuza;
·         Casas: 50 (cinquenta) aproximadamente;
·         Cemitério: 1 (um);
·         Comerciante de armazém de secos e molhados: Jaeme Francisco Fagundes;
·         Comerciantes de loja de tecidos em geral: Moisés Roriz e Odorico; mais tarde, Claudemiro Fernandes de Oliveira;
·         Contador de causos: Germano, Manoel Germano e Valtão do Jaeme;
·         Coveiro do cemitério: Arcênio Ribeiro (Senito);
·         Cremeiro: Francisco de Souza (Chiquito);
·         Dentistas: Pedrão, casado com Maria Lucinda, e Ludovico de Almeida;
·         Empreiteiro de roçada de pasto: Valter Francisco Fagundes (Valtão do Jaeme);
·         Energia elétrica: Não havia;
·         Farmacêutico: Érico Josué Meirelles (Lico);
·         Ferrador de animal: José Borges da Silva;
·         Furador e limpador de cisterna: Arcênio Ribeiro (Senito);
·         Homeopata: Sanches do Gino e Joaquim Luiz;
·         Padeiro: José da Honora;
·         Parteiras: Ana Baiança, Benedita Raimunda, Izídia Pires de Carvalho e Maria Cândida de Carvalho;
·         Pensão: Pensão da Vitalina e Pensão da Jovita Marçal;
·         Professores: Adonias Lemes do Prado, Dona Agite, Seu Júlio, Palmério José Borges, Dona Vanda, José Arnaldo Batista, Dona Ivani, Dona Dalva, Dona Helena;
·         Rezador de terço: Prof. José Arnaldo Batista;
·         Sapateiro: Sebastião Gonçalves da Silva;
·         Tenda de Ferraria (Ferreiro): Manoel Verônica Pinto;
·         Vendas e vendeiros (venda, boteco): Horácio Cecílio Ceciliano e João Pires de Oliveira.
                         

2. A vida dos habitantes do Patrimônio 

            Nascido a cerca de doze quilômetros distante do povoado, no ano de 1950 meus pais transferiram moradia para o tão falado Patrimônio de São Miguel. Meu sonho era estudar e a partir dali poderia realizá-lo convenientemente. Desde então iniciei contato direto com a vida daquela gente minha conterrânea da qual passava a fazer parte.
            Naquela época, não devia haver mais do que umas cinquenta casas de morada no arraial, todas construídas usando esteios de aroeira, travamento de madeira branca e telhas comuns fabricadas em olaria dali mesmo; paredes de adobe rebocadas com uma massa feita de uma mistura de areia fina, saibro e estrume de vaca, e, em muitas delas, pintura à base de cal. O piso normalmente era de chão batido, raramente ladrilhado ou cimentado.
            Além dessas edificações rústicas, apenas a capela, erguida em louvor a São Miguel Arcanjo, e o cemitério. A escola funcionava em uma dessas casas que ficava logo abaixo do largo. Tentou-se preservar a casa aludida para museu, mas logo após a construção do prédio do grupo escolar, foi ela cedida a título de comodato à Srª Benedita Elias, depois à sua filha Maria Elias e, finalmente, demolida.
            Todos eram produtores rurais. A esmagadora maioria vivia do cultivo do arroz, do milho e do feijão. Quase todos eram meeiros ou arrendatários. Os fazendeiros, além da sua quota-parte na meação ou arrendo, amainavam o gado leiteiro e fabricavam o queijo caseiro, ou comercializavam o creme desnatado do leite. As mulheres cuidavam da casa, cozinhando para peões na lavoura. Muitas fiavam o algodão plantado nos beirais das roças de toco e teciam no tear da casa as roupas da família, especialmente as calças que os maridos usavam no batente diário.
            Os jovens rapazes acompanhavam os pais no trabalho do campo; as moças eram preparadas ainda na adolescência para os afazeres domésticos, ajudando a mãe. As crianças, após o horário da escola, brincavam: as meninas tinham as bonecas e os meninos, a bola, ou o banho de córrego, ou ainda a caça de passarinho, cada qual com seu estilingue.
            Em noites de lua clara, havia outras diversas alternativas de brincadeiras e passatempos coletivos, às vezes até mistos. Entretanto, para os moços e as moças, a melhor e mais freqüente diversão eram os bailes e os pagodinhos de finais de semana, normalmente animados por uma sanfona, um violão e um pandeiro. As românticas serenatas eram uma constante no lugar, quase sempre regadas pela pinguinha fornecida pelo João Pires. As festas de gala eram os pousos de folia da zona rural, bem como os festejos em louvor ao Santo Padroeiro e aos demais santos da devoção popular local, com queima de fogos e da fogueira, e o hasteamento do mastro com a bandeira do santo festejado. 
            Pelo tamanho do lugarejo, existiam numerosas vendas, mais do que o necessário. O consumo de aguardente era mais que satisfatório para os vendeiros. Em conseqüência disto, porém, desencadeavam-se incessantes entreveros que, de quando em vez, resultavam em crimes de lesão corporal ou mesmo homicídios. Furtos, só mesmo de galinhas, à noite, praticados por farofeiros embriagados e famintos. Adultérios eram constantes, mas o povo não tolerava zona meretriz estabelecida no lugar. O desvirginamento de uma donzela era comumente resolvido pelo casamento do ofensor com a ofendida, em reparação do dano. Justiça se fazia ali mesmo, através das pessoas mais respeitadas, as consideradas pela população como conselheiras naturais. Só em casos extremos a polícia de Silvânia era chamada.


3. Pessoas que fizeram história em São Miguel do Passa Quatro

            Foram muitas as pessoas que fizeram a história da povoação. Vamos destacar apenas algumas delas, não que as outras não tenham tido papel de relevância, mas porque estas, ou foram nossas contemporâneas, daí por que tivemos a oportunidade de ver de perto o trabalho e a vida de cada uma, ou porque tivemos acesso às imprescindíveis informações a respeito de suas condutas e de seus feitos em favor de Passa Quatro.

            GUILHERME VELOSO PEREIRA foi fazendeiro na região, tendo como seu principal feito os serviços de agrimensura e topografia do Patrimônio de São Miguel, dando às terras doadas à Diocese de Goiás o traçado de ruas, praça e localização do cemitério e da capela de São Miguel.
            O Pe. Pedro Pinto Ferreira, vigário da Paróquia de N. S. do Bonfim, por ocasião da inauguração oficial do Patrimônio, em 29 de setembro de 1939, nomeou a comissão encarregada de construir a Igreja de São Miguel que foi encabeçada por Guilherme Veloso. A seu respeito o Padre Vigário anotou a seguinte observação: “Ajudou-me muito nessa iniciativa, o Sr. Guilherme Veloso Pereira, fazendeiro do lugar; proficiente engenheiro agrônomo, traçou ele o plano urbanístico de S. Miguel. Nesse dia da inauguração já se via o traçado das ruas, contando-se ao todo umas vinte casas.”
            Sobre ele escreveu seu amigo ilustre, Sêneca Lobo:

“Faleceu relativamente moço, acometido, como já disse, dessa chaga maligna, que ataca, há muitos anos, o homem do campo, sujeito pelas condições de vida, às picadas dos ‘barbeiros’, que têm seu habitat preferencial nos casebres e ranchos de pau-a-pique muito comuns naqueles tempos, nas fazendas. Quando Guilherme descobriu a doença de que era portador, sofreu tremendo choque, pois tinha perfeito conhecimento da gravidade do mal e, por outro lado, amava a vida que, naquela altura, já lhe sorria, fagueira e tranquila, graças aos ganhos acumulados pelos trabalhos realizados.”

            GRACIANO JOSÉ DA SILVA foi comerciante e professor particular na Fazenda Passa Quatro desde o ano de 1911 até 1940, quando se transferiu para Vianópolis, onde veio a falecer. Participou ativamente do desenvolvimento da região com o transporte de mercadorias em geral, buscadas no início da Estrada de Ferro Goiás, no lugar denominado Roncador.
Emprestou seu nome à única escola da povoação, que deixou de chamar-se “Escola Isolada da Fazenda Passa Quatro”, para receber, inicialmente, a denominação de “Grupo Escolar Graciano José da Silva”, e posteriormente o nome de “Escola Estadual de 1º Grau Graciano José da Silva”.
            Após a emancipação, várias mudanças ocorreram na formação do novo município, na tentativa de encontrar-se a real identificação dos característicos locais. E uma delas foi de iniciativa da Câmara Municipal, retirando da escola local o seu nome para emprestá-lo a uma das principais avenidas da cidade, a Av. Perimetral, que por lei municipal passou a denominar-se Av. Graciano José da Silva.

            ADONIAS LEMES DO PRADO foi quem fundou a primeira escola em São Miguel do Passa Quatro e foi também o primeiro professor, nos anos de 1945 a 1951. Sua residência era na própria escola e o seu esforço para ensinar as pessoas era sincero e admirado por todos. Nasceu em 15 de novembro de 1925, em Silvânia-GO, filho de João do Prado e Dolores Mercês Campos. Foi aluno do Ginásio Anchieta, de Silvânia, onde concluiu o curso ginasial.
            De São Miguel do Passa Quatro, Adonias voltou para Silvânia, chamado para exercer as funções de Inspetor Escolar e Tesoureiro da Prefeitura. Em 1957 foi Exator Estadual e em 1959 assumiu o cargo de Prefeito Municipal, mandato que exerceu até 1961. É sua a frase: “Nada é impossível aos homens, quando o ideal é maior do que as divergências”, proferida na solenidade de inauguração da sede da AFFEGO, entidade da qual era presidente.
            Em reconhecimento ao seu trabalho pioneiro no setor da Educação, tão logo ocorreu a instalação do município a Câmara Municipal solicitou à Assembléia Legislativa a mudança do nome da escola local, através de lei, dando à Escola Estadual de 1º Grau Graciano José da Silva o novo nome de Colégio Estadual Adonias Lemes do Prado, no que foi prontamente atendida.

            ALCIDES PEREIRA DE CASTRO foi o primeiro a levantar a bandeira da emancipação. Foi vereador por dois mandatos: 1954/1958 e 1962/1965, quando faleceu. Nasceu no dia 19 de agosto de 1915, em Santa Cruz. Casou-se com Otacília Maria Xavier no ano de 1941 e escolheu Passa Quatro para morar a vida inteira. Era muito bem relacionado em todas as camadas sociais, inclusive chamado constantemente para resolver questões pessoais e familiares. Foi um grande conselheiro e político exemplar.

            ÉRICO JOSUÉ MEIRELES (LICO), casado com Berenície Fernandes, filha do lugar, era o farmacêutico da povoação e adjacências. Aliás, desempenhava as funções de farmacêutico e de médico. Como não havia médico na região, nem transporte automotor para que se pudesse adquirir remédios com mais freqüência e transportar doentes para outros centros mais adiantados, o Lico era chamado para atender consultas, medicar o paciente e na maioria das vezes fabricar o remédio através de fórmulas que os laboratórios lhe prescreviam.
            Sarampo, crupe, coqueluche, febre de garganta, gripe, dor de barriga etc. ele diagnosticava e curava. O que lhe parecia impossível ele encaminhava para procurar melhor recurso fora.
            O Lico foi também Vereador. Lembro-me que sua plataforma de campanha eram: saúde, estrada e esporte. Inclusive, nos tempos áureos do futebol passaquatrense, início da década de sessenta, o Lico era o técnico do time que ganhava de Cristianópolis, de Piracanjuba, da Charqueada de Vianópolis e outros. Enquanto Vereador, foi o responsável pela arborização do antigo Largo da Igreja, hoje Praça Sebastião Gonçalves da Silva.

            FLORÍPIO JOSÉ ELIAS (FEFÉ) é casado com Maria Francelina e sempre residiu em São Miguel do Passa Quatro. Foi Vereador no período de 1977 a 1982 e Vice-prefeito entre os anos de 1983 e 1988, representando o povo de São Miguel do Passa Quatro na Câmara e na Prefeitura de Silvânia, respectivamente. O seu mandato terminou em 31 de dezembro de 1988. E o novo município foi instalado no dia seguinte, em 1º de janeiro de 1989, por ocasião da posse dos primeiros mandatários: prefeito, vice-prefeito e vereadores. A emancipação ocorreu por ato do Governo do Estado, publicado em 9 de janeiro de 1988.  
Fefé, nome pelo qual sempre foi conhecido, era político atuante e de grande prestígio, preocupado com o povo e com o progresso da povoação. Sua força eleitoral era reconhecida em toda a região, posto que os votos que levou do seu colégio eleitoral foram decisivos para eleger o Prefeito de Silvânia, chapa da qual fazia parte como candidato a Vice-prefeito. Sem isso, com certeza eles não teriam sido eleitos.
Como político, Fefé prestou relevantes serviços à comunidade, preocupado especialmente com a educação. Na sua gestão como representante de seu povo, batalhou e conseguiu o transporte escolar desde a povoação até Cristianópolis, para que os jovens pudessem dar continuidade aos seus estudos, cursando o 2º grau. Isso deu base para que ele próprio, logo depois, com a influência do cargo de Vice-prefeito, conseguisse implantar na pequena cidade o curso de 2º grau, tão sonhado pelos moradores. Isto no ano de 1987.
A questão do transporte escolar tem relevância histórica, uma vez que os alunos que concluíram o 2º grau em Cristianópolis, no final do ano de 1988, foram aproveitados na administração pioneira que se iniciou no ano seguinte.
Fefé conseguiu ainda com o Prefeito de Silvânia o calçamento da Praça da Igreja, hoje Praça Sebastião Gonçalves da Silva, o que foi considerado um feito de alta proporção, com grande repercussão na época.
A emancipação de São Miguel do Passa Quatro foi, sem dúvida, o seu principal trabalho. Se de um lado o Deputado João Natal comprou a ideia, apresentou o projeto na Assembleia Legislativa e o defendeu até a sua aprovação, de outro lado, nas bases foi Fefé quem promoveu o convencimento dos habitantes e colheu as assinaturas necessárias para a sustentação legal do processo emancipatório.
Por tudo isso, Florípio José Elias e o Deputado João Natal são merecedores do título e das honrarias de emancipadores de São Miguel do Passa Quatro.  

JOSÉ ARNALDO BATISTA veio para Passa Quatro no ano de 1948, como balconista da loja de tecidos de Moisés Roriz. Trabalhou o tempo suficiente para logo montar o seu próprio comércio.
Casou-se com Ivani das Chagas, a companheira inseparável que lhe deu 16 filhos. Juntos, passaram a ser os responsáveis pela educação dos jovens do lugarejo. Durante vinte e cinco anos tomaram conta da única escola, ensinando de maneira incansável e com competência, desde o bê-á-bá até o quarto ano primário.
            Tive o prazer de ser seu aluno. E mais tarde, seu colega de magistério, na mesma escola. E são inúmeras as pessoas das gerações de mil novecentos e cinquenta até mil e novecentos e setenta que foram iniciadas na escola pelo prof. José Arnaldo e pela profª Ivani.
            Não é tarefa fácil analisar o legado deixado por Zé Arnaldo à história de Passa Quatro. No campo da educação e da cultura, sem sombra de dúvida foi ele o principal responsável pela instrução e pelo encaminhamento de várias e várias gerações. Mesmo que o propósito fosse o de tão-somente prepará-las para a vida, acabou ele solidificando a base intelectual e cultural da população para emancipar o lugar e dirigir com competência os destinos do novo município.
            Na verdade, uma coisa parece clara: se a emancipação de Passa Quatro foi precoce, como muitos apregoavam na época, devido à falta de estrutura física, o povo, no entanto, encontrava-se preparado para o grande feito. Tanto é que o progresso se fez com uma rapidez assustadora, destacando-se no cenário estadual já no correr da administração pioneira. E o professor José Arnaldo é protagonista nessa história, porque foi ele quem deu o básico para a formação de toda essa gente.
            No aspecto religioso, da mesma forma, era ele o responsável pela capela, pela reza do terço nos finais de semana e pelas novenas nas ocasiões de festa. O padre quase não ia ao Povoado, mas, mesmo assim, com José Arnaldo à frente das celebrações, a população era na época, na sua quase totalidade, católica, apostólica, romana.

MANOEL INÁCIO CANEDO (CANEDO) transferiu-se de Goiânia para Passa Quatro em 1970, com o objetivo de montar sua própria farmácia, ele que já tinha experiência no ramo. Foi o continuador das atividades médico-farmacêuticas que antes eram desempenhadas por Érico Josué Meireles, o Lico.
Chegando às vésperas da Copa do Mundo de Futebol, Canedo instalou o primeiro televisor da cidade, dando oportunidade para que todos vissem os jogos da Copa pela televisão. A energia vinha de um motor estacionário do vizinho. Por causa da falta de energia, decidimos, eu e o Canedo, ir à procura do político poderoso de Silvânia e da região, José Caixeta, que, sensibilizado, comprometeu-se a levar energia elétrica para a cidade, com uma condição: os postes deveriam ser de aroeira e ficariam por conta da população. Fomos então de fazendeiro a fazendeiro à cata dos tais postes que eram, ora doados, ora vendidos a preço simbólico. O Manoel Paixão e o Chico Vieira foram os que mais contribuíram com a iluminação, doando os dois cerca de 150 postes. Foi um trabalho intenso, mas enfim chegou a tão esperada luz.
Como o ensino da cidade era somente até o quarto ano primário, eu e o Canedo fomos à luta e com muito sacrifício conseguimos criar o primeiro grau completo, de 5ª a 8ª séries. E o Canedo foi o primeiro diretor do Colégio, que passou a chamar-se Escola de Primeiro Grau Graciano José da Silva, hoje Colégio Estadual Adonias Lemes do Prado.

ARCÊNIO BATISTA RIBEIRO (SENITO) chegou a Passa Quatro em 1952, vindo da região do Rio dos Bois do Turvo. Montou o primeiro açougue da cidade. Logo que chegou, morreu uma senhora, e como não havia coveiro, diante do impasse o Senito ofereceu-se para abrir a sepultura. Foi surpresa para muita gente, pois o serviço parecia repugnante. Daí em diante efetivou-se como coveiro oficial e zelador do cemitério, vindo a aposentar-se no ano de 1982. Como não havia água encanada, Senito tornou-se também o furador de cisterna de maior prestígio no lugar.

SEBASTIÃO GONÇALVES DA SILVA ajudou a arborizar o antigo Largo da Igreja. E como morava bem no Largo, era a pessoa que montava guarda para zelar pela beleza e crescimento dos arvoredos. Ai daquele que se atrevesse a mexer naquelas plantas!
Foi um homem valente, que desafiou setenta e sete anos de uma vida suada, sofrida, mas honrada e feliz. Juntamente com Dona Maria Fernandes, a companheira fiel e inseparável de quase meio século de vida comum, soube criar e educar sete filhos.
            Uma vida pobre, pautada pela simplicidade. Mas éramos felizes. Faltava dinheiro em casa, porém a família se fartava em dignidade, trabalho, esperança e muita paz. Não havia luxo. Mas como ele próprio dizia, “o da boca nunca faltou”. Não era lá de muita conversa, mas tinha um coração afetuoso e enorme.
            Meu pai passou-nos a imagem de um homem honesto, lutador, dedicado à família, amigo de todos e respeitado na sociedade. Foi a melhor herança que nos deixou. O seu exemplo de vida foi a nossa principal escola.
Era quase analfabeto, porque não teve oportunidade de estudar e também porque no seu tempo o estudo não era uma prática costumeira na região. No entanto, sua sabedoria era algo admirável. Nunca tivera professor, gabava-se ele. Inclusive aprendeu sozinho a fazer a contabilidade de seu pequeno comércio. Aprendeu a dominar bem as quatro operações aritméticas.
            Veio ele da região do Roda Cuia, entre os Municípios de Bela Vista e Piracanjuba. Casou-se com moça do lugar e foi morar na Fazenda Córrego Fundo do Zé Orlando. Foi lá que nasci. De lá mudamos para a Fazenda Passa Quatro dos Braga, depois para o Guarirobal. Mais adiante, numa Quinta-feira Santa, eu com 6 anos de idade, transferimos residência para o então Patrimônio de São Miguel.
            Meu pai continuou trabalhando na roça. Na enxada, ora como meeiro ora como arrendatário, plantava o arroz, o feijão e o milho para o consumo da família. Com o milho, engordava o porco e as galinhas do gasto. No tempo que sobrava cultivava plantação de fumo, com o que se apuravam alguns trocados para as despesas gerais de roupa, calçado etc.
            Lembro-me perfeitamente de quando saía da escola, lá pelas dez e meia da manhã, e imediatamente ombreava a vasilha de comida. Andava a pé légua e meia, às vezes mais, às vezes menos, para matar a fome do velho. Chegava pelo meio-dia ou mais. Depois do quilo, pegava com ele na enxada, debaixo do sol ou da chuva, só deixando o serviço depois que o sol se punha.
            Eu era muito criança e morria de medo de assombração e de onça. Várias vezes me perdia no mato, quando o trabalho era arrancar muda de fumo, e a única coisa que sabia fazer era chorar e gritar até meu pai ouvir e responder. Eu não entendia por que ele aproveitava as pequenas queimadas nos miolos das matas para semear semente de fumo!
            E aí sofríamos os dois: eu, de medo, e ele, de fome. Depois ele me consolava. Dificilmente bradava comigo. Só quando fazia algo errado. Conversávamos pouco, mesmo trabalhando juntos diariamente, mas era o suficiente para me ensinar muita coisa.
            Seu Sebastião teve inúmeras profissões. Depois de muitos anos como lavrador, ele experimentou a carpintaria. De carpinteiro passou a serrador, onde recebeu de herança a hérnia que mais tarde o levou à morte. Foi também fabricante de fumo, foi sapateiro, vendeiro, proprietário de loja de tecidos, padeiro. Como padeiro fez muito sucesso. Do pessoal da época, quem não se lembra do biscoito de queijo e do pudim que ele fazia?
            Era apaixonado pelo seu Passa Quatro, onde viveu metade de sua vida. Nos últimos anos de sua existência, porém, teve de transferir-se para Goiânia, para onde seus filhos já tinham ido em busca de estudo e trabalho. Foi, mas, contrariado. Nunca conseguiu adaptar-se à cidade grande.
Mas Deus foi-lhe generoso, permitindo que vivesse o suficiente para ver um de seus filhos como primeiro Prefeito de sua terra do coração, com a incumbência de dar continuidade à edificação da obra tão grandiosa que lhe custou altos sacrifícios, não só a ele como também a tantos outros, tais como Alcides Pereira de Castro, Érico Josué Meireles (Lico), José Martins de Carvalho, José Calixto de Carvalho, Pedro Joaquim de Carvalho, Joaquim Tavares de Aleluia, Horácio Cecílio Ceciliano, Joaquim Fernandes de Oliveira, José Arnaldo Batista, Jovita Marçal, Sebastião Ferreira, Florípio José Elias (Fefé), José Borges, Firmino, Carrim, Italco, Sancré, Pedro João, Jaeme Fagundes, Moisés Roriz e tantos outros.
            E na qualidade de um dos pioneiros do pequeno lugar, de defensor e de benfeitor, acabou sendo homenageado pela população, que deu seu nome à principal praça da cidade: “Praça Sebastião Gonçalves da Silva!”


4. Os Vereadores de São Miguel do Passa Quatro, em Silvânia, antes da emancipação. A Vice-Prefeitura de Silvânia

Até a emancipação, São Miguel do Passa Quatro foi sempre voz ativa nas decisões políticas tomadas na sede do Município, em Silvânia, através de um representante do povo, tendo conquistado uma vez a Vice-Prefeitura.
Foram os seguintes os políticos que representaram o povo passaquatrense nesse período:

·         Alcides Pereira de Castro, o primeiro deles, em duas legislaturas de Vereador (1954/1958-1962/1965);
·         Érico Josué Meirelles, Vereador (1959/1961);
·         Alípio José Assunção, Vereador (1966/1970);
·         Francisco de Souza (Chiquito), Vereador (1966/1970);
·         Florípio José Elias (Fefé), Vereador (1977/1982);
·         Manoel Martins de Carvalho, Vereador (1983/1988);
·         Florípio José Elias (Fefé), Vice-Prefeito de Silvânia (1983/1988)


5. O futebol em São Miguel do Passa Quatro

            O futebol em São Miguel do Passa Quatro era muito respeitado em toda a região. O time local jogava constantemente contra os times de Cristianópolis, Rio do Peixe, Batã (Egerineu Teixeira), Vianópolis, Charqueada de Vianópolis e até Piracanjuba. Dificilmente perdia uma só partida, principalmente dentro de seu território.
            A Esquadra Passaquatrense, que teve como seu principal técnico o Lico (farmacêutico), por muitos anos, ficou com uma formação definida. Veja abaixo sua escalação, colocando-se às vezes dois em cada posição, porque um preenchia o lugar do outro que deixava o time por motivos diversos, a saber:

Quíper (Goleiro): Evaristo, Tião Santa Bárbara, Silvio Pereira de Castro e Zezico Pereira
Alfo direito (Lateral-direito): Ditim Chaga e Antônio Bino                      
Alfo esquerdo (Lateral-esquerdo): Jair Cecílio, Pedro Borges
Beque central (Zagueiro central): José Paixão, Ludovico de Almeida      
Beque esquerdo (Zagueiro esquerdo): Delcides, Domingos Vieira
Center-alfo (Médio-volante): Chico Vieira, Evaristo
Meia-direita: João do Italco, Dorival Vieira
Centroavante: Vadim Fernandes
Meia-esquerda: Zezico Pereira, Nilson do Carrim
Ponta-direita: Daniel Marçal, Itagiba
Ponta esquerda: Zé Pontes, Tião do Creoulo.


         Capítulo V

                                       NAQUELE TEMPO!...
ASPECTOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. BRINCADEIRAS E TRAQUINAGENS


1. As brincadeiras no Largo da Igreja

O Largo da Igreja era enorme. Propício para as traquinagens da gurizada. A noite era um breu. Às vezes chovia e escurecia ainda mais. Quando isso acontecia ninguém brincava. Porém quando era lua clara - ainda bem que antes da energia elétrica já existia lua - era só chegar no largo e dar um grito. A molecada vinha na mesma hora. Nós brincávamos de tudo quanto era coisa. Até de esconde-esconde. Com as meninas a melhor brincadeira era a de passar anel.
            A brincadeira de “passar anel” era muito romântica e proporcionava a oportunidade para arranjarem-se os namoros. Consistia no posicionamento de todos, meninos e meninas, rapazes e moças, sentados bem juntinhos e de mãos postas sobre os joelhos. Um dos participantes vinha com o anel preso nas mãos, fazendo-as passar devagar e de maneira carinhosa por dentro das mãos de cada um dos outros participantes. E dentro de uma delas, normalmente a de simpatia de quem o passava, o anel era deixado. No final, a pessoa perguntava a qualquer um dos integrantes: fulano, com quem está o anel? Se a pessoa acertasse, era ela quem devia passar o anel novamente; se errasse, receberia um castigo: recitar uma poesia, latir feito cachorro, pular como sapo etc. E aí, quem estava com o anel escondido iria passá-lo outra vez.
            Certa vez, numa brincadeira de esconde-esconde, o Geraldo Cabaça foi correr e mandou os peitos na cerca de arame do Zé Patrício que caiu molinho para trás. Deu muito sangue e nós ficamos apavorados. Correu todo mundo e ele ficou ali sozinho, gemendo, até melhorar.
Agora o mais gostoso mesmo era o rabo de raposa. No entanto só acontecia de vez em quando, assim que aparecia um besta que não conhecia a esparrela.
            Quem preparava o rabo de raposa eram o Jerônimo e o Jaeme Marçal. Às vezes o Jaeminho também. Eles escolhiam a privada mais fedorenta para sujar bem uma das pontas de um pau qualquer. E um deles montava na outra ponta, na parte limpa do cavalo-de-pau, e lá íamos nós atrás, fazendo de conta que íamos pegá-lo. Mas era só um “faz-de-conta”, até que a  vítima, bem preparada e querendo mostrar proeza, atarracava o tal pau e besuntava-se toda de fezes ardidas.


2. O Rabo da Raposa e outros brinquedos

Tinha o Bento[1], marmanjão recém-chegado da fazenda, que vinha de mudança para aprender o abecedário no Povoado. Era costume por aquelas bandas levar o filho para onde houvesse escola, que era para não ficar analfabeto.
            Pelo menos assinar o nome, ler a cartilha e fazer as quatro operações. “Tá muito bão. Aprendendo isso já pode voltar pra roça” - era o que defendia seu pai.
            O Bento era meio desengonçado, muito comprido e magrelo. Via-se que era de pouca destreza, menino que cresceu antes do tempo. Porém de boa família. O pai era daqueles homens mais sistemáticos de que se tinha notícia na região. Além disso, era muito rico, o que fazia com que todos o respeitassem.
            Acordo cedo, como de costume. Um carro parado quase em frente da nossa casa. Eram quatro juntas de bois daqueles bem criados. Decerto pastavam só jaraguá e meloso, pois que os bichos estavam gordos de dar gosto. A mudança acabava de desocupar o carro. Muita lenha, lenha de roça nova, boa de pegar fogo. No mais, uns dois ou três bancos compridos, passados no cepilho, que na fazenda é próprio para sentar e escorar as costelas, na hora do quilo do almoço e de tardinha, depois do banho. Havia ainda uma mesona grossa, de madeira, que era para picar capado.
            Ah! Capados havia três: um mais magro, que gritava demais, motivo de eu ter acordado assustado; outro, de meia ceva, e o terceiro, que estava sentenciado a morrer naquele mesmo dia.
            Os catres, lembro bem que eram quatro. Os trados eram de couro cru trançado. Já os colchões eram de palha, porque não se usava outra coisa naquele tempo. Palha novinha e com fartura para rechear bem as camas. Feijão eu vi três sacos: dois amarelos e um roxinho. Arroz eu contei vinte sacas amarradas pela boca. Havia galinha também, não sei quantas. Galo, recordo-me de um carijó do pescoço pelado que cantou bonito antes de descer do carro. Era muita fartura! Pensei logo nos ladrõezinhos de galinha lá da Rua da Lata. Decerto iam fazer a festa!
            Fui o primeiro amigo do Bento. Vi logo aquele jeitão dele e pensei cá com meus botões: vai agarrar no rabo de raposa hoje ainda! Aproximei-me do chegante para ganhar-lhe a confiança. E também para começar a ensinar-lhe as catimbas da corrutela.
            - Olha, Bento, tem o Fiquito, que é tocador de violão, mas é muito metido. Acha que é o tal. Não faz amizade com ele não. Tem o Nilsinho do Carrim, que briga com todo mundo. Tem também o Sação que é meu primo; nós estamos de mal agora pelo motivo da briga de ontem à noite; aliás, nós nunca conseguimos ficar de bem, pois a gente não combina, não sabe viver sem brigar. Tem ainda o Jair do Almiro, que é um sujeito bom. Só que nós estamos de mal agora, mas assim: a gente conversa um com o outro, mas não pode falar o nome não, pois tá de mal. Se errar e falar o nome do outro aí fica feio, porque puxou conversa; aí tá querendo ficar de bem, não pode. Tem mais o Manezinho Verônica, que é magrinho, petitico, mas tem dois irmãos grandes que ajudam ele a brigar e bater na gente; é povo que deve ficar lá e nós cá; banana pra eles, ó! No mais, a turma é boa. Nós dois unidos, ninguém vai poder com a gente.
            Eu falava, falava, e o Bento nada dizia. Só escutava, assim meio ressabiado.
            - Ah! Esqueci de falar do Jerônimo do Zé Firmino e do Levi da Dona Bárbara. Eles são maiores do que nós, mas não brigam com ninguém. São uns coitados. É gente muito fina. O Levi é irmão do Fiquito, mas é muito diferente dele. Com o Jerônimo há pouco tempo tive um entrevero, mas foi coisa sem importância. Tinha uns meninos correndo atrás de mim, já tava escuro, na boca da noite, aí eu dei só uma paradinha e finquei uma pedrada de estilingue pra trás. Acertasse em quem acertasse. E acertou justo no Jerônimo, que estava encostado no muro. Pegou por cima do olho direito dele que fez um papo na mesma hora. Aí eu corri. Ele ficou jurando vingança muito tempo, mas depois reconheceu que não foi por querer.
            - O problema meu mais do Sação e do Jair do Almiro - continuei - é que tem uns povo aí que gosta de fazer a gente brigar!  Quando nós estamos juntos, fica atiçando, atiçando... Põe a mão no meio de nós e fala: “Quem for homem cospe aqui!” Aí a gente não agüenta e cospe mesmo. Só que o outro tira a mão e o cuspe vai parar na cara do adversário. Então a gente trança nos tapas na mesma hora. Onde já se viu tomar uma cusparada na cara e ficar por isso mesmo? Só se tiver sangue de barata! Agora o mais custoso é que quando a gente começa a trocar tapa, não tem jeito de parar, porque há  empate. Só larga quando um acerta o nariz do outro. Aí faz sangue e a gente não continua não, porque senão é crime. Mas nós não temos raiva um do outro não. Só brigamos porque os grandes atiçam.
            Tendo cumprido o dever de informar o amigo recém-chegado sobre a molecada do lugar, precisava agora mostrar-lhe os nossos costumes e os nossos afazeres do dia-a-dia.
            - Sabe jogar bola? - perguntei-lhe por perguntar, já que todo moleque na nossa idade sabia jogar.
            -  Nunca joguei não. Lá na roça nós só trabáia! - respondeu com aquele vozeirão ora grosso, ora fino, próprio de quem está mudando a fala.
Vai mal, pensei cá comigo. Esse é jacu mesmo!
- Não tem importância, disfarcei. Daqui a pouco a molecada desce cá pro largo da igreja e ocê fica espiando até aprender. 
- E tomar banho no córrego, ocê toma?
            - Se minha mãe deixar eu tomo. - respondeu.
            - Então tá bom, retruquei. Depois a gente pede a ela. Tem um poço ali em baixo no córrego das Vacas que é muito bom. É meio perigoso que tem muita tiririca. Diz que tem jacaré também, mas não acredito não, ninguém nunca viu! Jaracuçu eu já vi um desse tamanho. E tem um lugar lá que a gente não toma pé não. É muito fundo. Você sabe nadar?
            - Com duas cabaça eu sei, afirmou ele prontamente.
            - E de sacarria, ocê sabe brincar?
            - Sei nem o quê que é isso. - respondeu surpreso.
            - Ora, é brinquedo que pequeno não pode brincar com grande não, porque na hora dos murros o pessoal bate pra valer mesmo. É assim: um fica no pique e sai correndo atrás dos outros meninos. Se encostar a mão num, tem que voltar imediatamente pro pique, negando dos murros, ele e o que ele pegou. E assim vai indo até pegar o derradeiro que tá brincando. É brinquedo de lua clara e é perigoso. No escuro não presta não, porque a gente não vê o inimigo e aí apanha feio. Esturdia o Zecão acertou um murro na cacunda do Jaeme Marçal que ele chegou gemer. Depois vomitou sangue. E não pode vingar não, porque é brincadeira. De vez em quando a coisa acaba em briga, mas é menino ignorante que não sabe brincar direito.
            Eu percebia que o amigo estava começando a se interessar pela minha conversa.
            - De açoite cê brinca? - indaguei.
            - Que jeito que é? - interessou-se o amigo.
            - Açoite é aquele brinquedo de segurar firme na mão um do outro, fazendo aquela esteira; depois o da ponta, que geralmente é o mais forte da turma, sai correndo e puxando o resto. Quando ele sente que a velocidade tá boa e no ponto, aí ele puxa para o lado, em curva, firmando a fileira para açoitar o último lá da rabeira. Tem vez que o sujeito vai cair lá muitos metros de distância.
            - Não sei brincar dessas coisas d’ocês da cidade não. - estranhou o amigo. Lá na roça a gente só trabaia, ninguém tem tempo de vagabundar não.
            Não fiquei ofendido. Mesmo porque o meu dever era o de amaciar o amigo, para logo mais à noite induzi-lo a pegar o rabo de raposa. Se abrisse com ele uma discussão naquela hora, poderia correr o risco de perder o freguês. E isso eu não admitiria jamais, pois uma oportunidade daquelas era rara. Pegar o rabo de raposa é só para quem nunca ouviu falar naquela brincadeira.
  - Eu quero é ir pra casa, arrematou meu mais novo companheiro, demonstrando já um certo aborrecimento.
            - Mas correr você deve dar conta, garanto!? - tentei remediar a situação.
            - Correr eu tô acostumado a correr é atrás de boi brabo, sô! - animou-se o garotão. Isso eu sei fazer! Onte mesmo um bezerro escapuliu do curral e ia bater direitinho onde tava a mãe; saí correndo, ataiei por baixo, pulei a cerca de arame num improviso e cheguei primeiro; levei o bicho pro cantinho da cerca, garrei na oreia do pagãozinho, quebrei o pescoço da fera e derrubei ele no chão; gritei meu pai: traz o laço e a peia, pai, que o diabinho tá preso! Mas se eu não fosse bão pra correr, ah, era peta, não cercava o bicho nem que o Manezim vinha da lenha!
            Aproveitei a animação do meu amigo e fui logo ao assunto, pois a conversa já estava ficando arrastada e enjoativa e não tinha como segurá-lo mais ali.
            - Você deve ser batuta mesmo é pra correr atrás de raposa, né?!
            - Raposa? Credo em cruz! Aquilo é bicho do capeta. Só serve é pra comer nossas galinhas tudo. Lá onde nós mora tem demais. Mas lá a gente não corre atrás não. É na cartucheira que o pai dá venção nelas.
            - Não é raposa de verdade não, é uma brincadeira! - consertei a conversa. O sujeito monta num cavalo de pau e sai galopando. E a molecada corre atrás pra agarrar o pau, que nós fazemos de conta que é o rabo da raposa. O que correr mais agarra primeiro e ganha o prêmio. Mas tem que segurar firme o rabo da danada, senão não vale. Às vezes a gente tem que atarracar o rabo e abraçar com ele, que é pra mode segurar mesmo, pra não escapulir.
            - Que hora vai ser? - indagou o chegante.
            - De noite, depois da janta, aqui mesmo no largo.
Chegado enfim o grande momento de pegar o rabo de raposa, na forma combinada, eu e meu companheiro corríamos lado a lado. Não demorou muito e o Bento agarrou a bicha, melando-se todo, sob as vaias e os gracejos da capetada.
Corri para bem longe e só cheguei à minha casa mais tarde, depois de ter cessado todo o movimento da rua. Mesmo assim ouvi várias vezes meu companheiro reclamando que eu não podia ter feito aquilo com ele, pois eu era o único amigo que ele tinha no Povoado. Confesso que fiquei arrependido e com pena do coitado, mas era tarde.
            E foi nessas circunstâncias que me tornei o primeiro amigo do Bento, mas ao mesmo tempo o seu primeiro inimigo por vários dias, até o início das aulas, quando refizemos nossa amizade.

                                  
3. O cavalo e a cisterna

Havia um cavalo pedrês, arisco e bom de trote, que era bem manjado pela população. Quase toda noite os moradores acordavam com o tal exarando um sopro pelas narinas, num barulho que incomodava a todos, pastando um capim duro e resistente. De vez em quando erguia a cabeça para deixar escapar um relincho estridente, que acordava quem estivesse dormindo.
            Não foi nada não. Os moleques, cujos nomes aqui são fictícios, para não expor ninguém ao ridículo, com muita astúcia amarraram uma lata vazia, grande, de uns vinte litros, desocupada, bem barulhenta, no rabo do coitado. E meteram a mão aberta – assim de chapa –, na cara do relinchador, despachando-o rua abaixo.
E o trem saiu doido, desembestado. A lata beijava o cascalho, pulava pra cima feito pipoca, tornava a cair, numa desordem e num alvoroço dos diabos. Quanto mais barulho fazia, mais o cavalo rinchava, corria, urrava, urinava... Não tinha esse que não comprasse medo.
Já era um pouco tarde da noite, mas mesmo assim alguns atrasados ainda se postavam no largo da igreja. E o tal marcou no rumo dos indigitados, dando coices para todas as bandas, querendo desfazer-se daquele objeto que a incomodava e a agredia. Só se via gente assustada, correndo sem direção.
Para eles, até aí tudo bem. Achavam graça e divertiam-se a custas do pedrês. No entanto, num mais que perigoso zigue-zague pela rua afora, o pobre animal caiu por cima do pescoço, numa cisterna velha que o dono não tivera tempo para entupir, e acabou morrendo. Nessa hora a meninada capou o gato. Sumiu todo mundo. Cada qual procurou seu rumo, com medo das consequências.
            No outro dia, o dono do cavalo era visto campeando, desinquieto, para lá e para cá, indagando a todos que encontrava pela frente, mas ninguém pôde socorrê-lo com uma mísera informação, o que concorria para aumentar ainda mais sua aflição. Alguém mais afeito às coisas da religião chegou a sugerir que ele providenciasse um responso, a fim de localizar o animal sumido.
Não foi preciso. Logo mais tarde o esconderijo do finado foi descoberto. Não tinha mais jeito. Não fedia ainda, mas já estava inchado e azul, à espera dos urubus. Nesse momento, chegou o Zé Fulano, compadre do inconsolado dono do ex-cavalo. Sugeria que o valor da indenização a ser cobrada do infrator precisava ser bem alta, mas bem alta mesmo, para cobrir o valor do animal e o tamanho do desaforo.
O proprietário, homem humilde, nada falava, só permanecia surpreso diante daquele fato inusitado. Presentes alguns informantes imbecis, a sorte dos arteiros foi traçada ali mesmo. E assim foram pegos sem muito trabalho. E para surpresa geral, inclusive do próprio Zé Fulano, que aumentava o valor da indenização a todo instante e esparramava valentia para todos os cantos, seu filho era o principal infrator.
Diante da surpresa, Zé Fulano tratou logo de desconversar, diminuindo o tom da fala e baixando o preço da reparação do dano a um valor irrisório. Abrandou mais ainda a voz e aconselhou, quase que implorando: “Compadre, acho que uns trezentos tão de bom tamanho pra cobrir o prejuízo! O senhor não acha?”
Só se ouviam risos e galhofas. Mas pelo menos não saiu de graça!


4. Tião Preto, o valentão

Sucedeu que alguém egresso do povoado – distante da sede, mas pertencente àquela jurisdição – chegou alarmado à delegacia de polícia, noticiando que um sujeito que atendia pelo nome de Tião Preto, muito valente, bravo demais, estava promovendo uma quebradeira dos infernos na venda do João Pires, na maior balbúrdia, desinquietando a pacífica população do lugar.
O delegado, que não ostentava nenhuma formatura – chamado delegado de calça curta –, mas que contava em sua ficha longos anos de janela, do alto de sua experiência não se esqueceu de prestar atenção ao nome do perigoso elemento que seus homens deveriam prender: Tião Preto!
- Você viu o cabra? – ponderou a autoridade ao mensageiro.
- De jeito nenhum. Acha o delegado que eu ia chegar perto daquela trabuzana? Mas nem que a cobra fumasse! De uns cinquenta metros de distância só se ouvia trem quebrando, gente correndo, e o sujeito lá dentro, berrando grosso e insultando todo mundo. O povo tava apavorado, doutor.
Diante de informações tão preciosas, o chefe da delegacia recrutou seis pê-emes e deu ao cabo a incumbência de chefiar a delegação que deveria trazer preso o valentão Tião Preto, a bem da ordem pública.
- Três home não basta, delegado? – perguntou o cabo, não propriamente com o intuito de mostrar-se um profissional destemido, mas para fazer uma mediazinha com o chefe.
- Convém não, Cabo João. Seguro morreu de velho e ainda morreu. Você viu a ficha do malandro? E o nome dele: Tiããão Preto! Deve de ser um negão agigantado, daqueles que vêm de longe, preparado pra briga. Faixa-preta, sei lá! Não quero que minha polícia volte desmoralizada.
Dois jeeps conduziram os componentes da expedição: o da delegacia e o que veio da prefeitura requisitado para aquela tarefa. No que chegaram ao povoado, foram direto para o local do crime. Haviam combinado com antecedência que era para prender o homenzarrão no abafa. Era chegar de uma vez e não dar oportunidade para o criminoso esboçar qualquer reação. Assim a empreitada ficaria mais fácil. Foi a estratégia escolhida após calorosa discussão, antes do contato direto com o perigoso arruaceiro.
E assim se fez. Ou melhor: tentou-se fazer. É que, entrando de supetão na venda, na pressa do momento não conseguiram vislumbrar o desafeto. Duas pessoas apenas se achavam no interior do estabelecimento: o vendeiro, vomitando ódio para todo lado, e uma pequena figura humana, aparentemente sem importância, sentado com as mãos escorando o queixo, cochilando, já dominado pelo peso da ressaca.
- Cadê o tal Tião Preto, valente duma figa, que tá amedrontando o povo? – indagou de maneira ríspida e corajosa o responsável pela diligência.
- É eu! – respondeu gritando o pretinho, acordando assustado e arregalando os olhos, sem saber direito de onde vinha a ofensa.
- Teje preso! – decretou a autoridade. – Levanta e fica em pé!... Digêro!...
Que decepção! Mal conseguiu pôr-se de pé o acusado e os soldados arriaram as armas, desanimados. O bebum, vendo apontados em sua direção nada menos do que quatorze fuzis – pelo menos foi o que ele declarou ter enxergado, mas na verdade eram sete –, sarou da pinga na hora e pôs-se a tremer feito vara verde, pedindo para tudo quanto era santo.
- Pelo amor de Deus não me mata! Eu sou um coitadinho, nunca fiz mal a um mosquito.
- Uai, você não é o valentão daqui, bagunceiro, matador?!...
- Sou não! Mentira! Quem que falou uma asneira dessa pro senhor? Nunca matei uma galinha, nem de estilingue!... Me deixe ir embora!...
No entanto, mesmo diante daquela dura realidade, que expunha o vexame da diligência, estavam cumprindo ordem e, portanto, a obrigação dos abnegados soldados era conduzir o malfeitor até a presença do delegado, mesmo que se tratasse de um Tiãozinho Pretinho insignificante.
E prenderam Tião Preto assim mesmo, indiferentes às suas lástimas e à sua manifesta inofensividade. Entregaram-no ao delegado e deram por cumprida a sua missão.
Foi constrangedor. A autoridade tentava interrogar o preso, que tremia feito vara verde. O indigitado só conseguia dizer, em defesa própria: “Sou valente não! Mentira! Quem que falou uma asneira dessa pro senhor? Nunca matei uma galinha, nem de estilingue!... Me deixe ir embora!...”
Na verdade, foi valiosa a interferência de um amigo, que contou ao delegado a seguinte história:
“Ele é um pobre coitado! Como o doutor pode observar, ele não tem nem metro e meio de altura e não pesa mais do que uns quarenta e cinco quilos. Os dois braços são tortos daquele jeito porque, no nosso tempo de meninos, ele caía frequentemente nas perambeiras dos rios e os destroncava bem nas juntas. Vivia com os braços enfaixados. O motivo de ele cair à toa eram as pernas, também emborcadas para fora e fininhas de nascença.”
O delegado não sabia o que dizer. Apenas ouvia constrangido.
“O doutor não leve a mal, mas vou contar-lhe um pequeno fato: Há pouco tempo, o Faria, fazendeiro bom de copo e muito gozador, depois de uma gorda rodada de cachaça, decidiu sair pela rua a fora, portando nos ombros um saco de aniagem contendo um objeto estranho, ao que o portador cobrava uma pequena quantia em dinheiro para exibi-lo ao curioso que se dispusesse a pagar. Dizia ser um bicho muito feio, trazido da África. Dentro do tal saco estava nada menos do que Tião Preto, encolhido, cara sem-vergonha, e mostrando os dentes esbranquiçados. O dinheiro que conseguiam juntar com essa estripulia era para comprar pinga.”
A decepção do delegado era visível. Permanecia calado, sem esboçar uma só reação. Com muito custo conseguiu exibir um sorriso amarelo, mais por educação do que por achar alguma graça naquela história inusitada. E ordenou que o valentão Tião Preto fosse liberado.


5. No fundo da corrutela tinha um córrego

                                                                                             
No fundo da cidadezinha tinha um córrego que corria deixando pelo caminho poços enormes de águas paradas. Muito batume de um lado e de outro, com muitas taboas e tiriricas. Com tiririca e tudo, em meio aos desafios e riscos oferecidos pela planta daninha que corta feito navalha, tornava-se o piscinão dos desocupados.
            Dezenas e dezenas de moleques tomando banho, pelados, pulando na água de ponta ou de barriga, e gritando o que a garganta dava. Nenhum bicho selvagem seria tão corajoso a ponto de permanecer ali por perto. Nem sucuri.
            Por falar em sucuri, certa vez apareceu lá uma baita. Quase três metros de comprimento. Ainda bem que não foi dentro d’água, senão o Xereca não tinha escapado. Meninada entretida com o banho, Xereca saiu do meio da turma para o seco, a fim de receber o afago do sol. Beiços roxos parecendo flor de maracujá. Tremia feito vara verde. Quando se preparava para sentar-se comodamente em uma coivara, eis que dá de testa com o aleijo de cobra. Botou a boca no mundo. Exalou um berro tão estridente e tão feio que todo o mundo ouviu e foi correndo para ver o que era.
            Era ela: preguiçosa, simpática e astuta. Sorte que estava espichada no mandengo, exibindo seu exagero dimensional. Decerto apreciava a quentura do sol, ou estava indo embora de medo da arruaça dos moleques. Não ofendeu ninguém, mas o medo que provocou na meninada foi para rir vários dias seguidos. Só se ouvia menino gritando e pedindo socorro, chorando e correndo nu, desordenadamente.
            Por causa desse fato, aquele poço ficou condenado. Ninguém podia banhar nele. Principalmente porque, além da sucuri, que não era mais embromação dos pais para amedrontar os filhos, mas que já tornara fato concreto, havia a fama dos jacarés. Ninguém duvidava de mais nada. Se existia sucuri, que todos viram com os próprios olhos, por que não acreditar na existência de jacaré?
            Passado algum tempo, não é que um dia apareceu lá um jacaré! Enorme, de dois metros e tanto de comprimento. Veio atrás de dois meninos imprudentes que nadavam além dos limites permitidos. Foi uma gritaria dos diabos. Menino corria para toda direção. A população ficou alarmada. O piscinão transformou-se em local terminantemente proibido, para desprazer dos irrequietos banhistas.
            Se não era permitido ali, o jeito era buscar divertimento noutro lugar. O Lajeado, apesar de raso, tinha a vantagem de ser o lavador de roupa da mulherada. Tinha também o Poço da Pedra, um pouco mais distante, porém mais tranquilo, sem ninguém para atrapalhar.
Por sorte apareceu o Serafim com uma bicicletinha de menino, que foi amor à primeira vista para toda a renca de garotos desocupados. Na cidadezinha havia apenas quatro bicicletas de adulto, e os donos não deixavam ninguém chegar perto. Quando o pai de Serafim, um dos mais ricos do lugar, presenteou o filho com a tal bicicletinha, aí a meninada criou alma nova. Todos queriam aprender a andar. Uns quarenta ou mais na briga para montar nas duas rodas.
Mas Serafim era menino caprichoso. Até permitia que andasse no seu veículo, mas impunha uma condição: “Tem que ajoelhar nos meus pés e me pedir bênção!”
Não deu certo, porque ninguém fez objeção. Serafim cansou de abençoar moleque sujo e catarrento ajoelhado aos seus pés. A turma pagava qualquer preço para aprender a andar na tal bicicleta.
Aí ele inventou outra história: “Agora é na porrada. De dois a dois: quem vencer, pode dar uma voltinha.”
Mas aí o pessoal achou que já era desaforo. E juntou todo o mundo e fez a bicicletinha virar muitos pedaços, sob os protestos inaudíveis de Serafim. Se pobre tinha de ser humilhado para andar na dita cuja, então rico também não andava, ora!


6. A era do estilingue

                                              
            Naquele tempo, todo moleque que se prezava possuía um canivete, um estilingue, uma capanga para a munição, um bom pião e um monte de cordão no bolso.
            Terminado o horário da escola, mal dava tempo de almoçar e eu já saía de fininho, escondido da minha mãe, para a principal aventura do restante do dia com a turma: a caçada de passarinho.
Aquela tarde, porém, era especial, e por isso eu não queria a companhia de nenhum invejoso. Ia sozinho. Estilingue novo no pescoço, feito colar. Diferente daquela atiradeira confeccionada a toque de machado e toda arrebentada que me acompanhava há tempo. Mas uma novinha, que meu primo me trouxera de presente. Forquilha de goiabeira, ainda cheirando a nova, bem triangulada; borrachas aparadas com muito cuidado e protetor de municiamento trabalhado em sola batida e macia, para melhor impulsionar a bala de pedra boa, escolhida a dedo.
Sempre fui bom no estilingue. Lá em casa eu que matava frango para minha mãe. Uma pedrada só e a cabeça do bichinho rolava. Eu me sentia orgulhoso e autossuficiente.
Naquele dia eu estava ansioso para batizar minha arma preferida e colocar o primeiro pique numa das laterais da forquilha. A antiga tinha vinte e oito piques de canivete, contando de um lado e de outro. E não cabia mais nenhum. O passarinho virava o pé para o sereno e meu estilingue ganhava mais um sinal para ficar registrado o grande feito.
Entusiasmado, eu não desperdiçava nenhum balaço em uma avezinha qualquer. O alvo eram as juritis e as inhambus da tapera do Alcides Pereira, perto do lajeado.
Mas, diabos! A aflição apresentava-se mais forte do que a ordenação. Não via a hora da estreia. No percurso, um calango. Pronto! Está aprovada a perigosa máquina atiradora. Nem mexeu o rabo.
Mais adiante, dois anus brancos, equilibrando-se no fio de cima do arame farpado que margeava o rego d’água. Não. Não vou arriscar um tiro nem de brincadeira. Anu é passarinho feiticeiro. Corro o risco de arrebentar as borrachas novas do meu presente de estimação. Já fui vítima disso uma vez. Borracha de boa qualidade, novinha. A primeira pedrada foi certeira, o anu nem tremeu. Porém, na segunda, a borracha arrebentou-se e deu uma baita lapada na minha cara. Como doeu! Por isso, gato escaldado com água quente tem medo de água fria.
Na galha de baixo da gameleira, bem exposto e destemido, um joão-bobo. Não, não mato joão-bobo. Por dois motivos: primeiro porque é covardia, pois o danadinho deixa a gente chegar tão perto que quase dá pra pegar com a mão; segundo, parece que ele benze o atirador, que fica igual a bobo atirando sem acertar o alvo, apesar da pequena distância, completamente desmoralizado. E se acerta uma pedrada, em vez do pique na forquilha, que é o motivo de orgulho do bom estilingueiro, o corte acaba aparecendo na borracha, que logo se arrebenta. É a maldição do joão-bobo, que não é diferente da do anu.
Na frente da casa da tapera, um bando de rolinhas, catando as migalhas que lhes garantiam o sustento. Rolinha também eu não mato. Minha mãe ensinou que no tempo que Nossa Senhora e São José fugiram para proteger o Menino Jesus, as rolinhas vinham atrás deles desmanchando os rastos para despistar os soldados perseguidores.
Logo, o dedo-duro cantou lá no alto de um angico.
— Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi!
Esse aí eu sapeco. Diz também minha mãe que enquanto as rolinhas ajudavam a Sagrada Família a ir embora, esse aí ficava o tempo todo dedurando: “Bem-te-vi! Bem que eu vi!”. Não gosto de gente covarde não. Fuxiqueiro duma figa!
Deu pressa de voltar para casa. Três juritis e duas inhambus. A capanga encheu. Pensei em agradar minha mãe. A carne da janta estava garantida. A velha era só alegria.
Eu tinha muito respeito pela minha genitora. Ela era muito diferente do meu pai. O velho era bravo, bradava, mas não batia na gente não. Ela, pelo contrário, era uma fera. Pequena, magricelinha, mas da mão pesada. Todo santo dia ela me aplicava uma surra. E de chinelo, daqueles chinelos de antigamente, de salto grosso e sola batida. Não havia menino que se atrevia a suspender o topete.
Contudo, depois da boa média feita com ela, eu tinha permissão para sair de novo e aproveitar bem aquela tarde.
A turma encontrava-se no largo da igreja. Uns brincando de finca, outros jogando biloca e outros ainda exibindo a habilidade de rodar o pião. Era só chegar até a esquina e gritar: “Ôôôôôôiê!” E o pessoal entendia na hora: era para tomar banho no rio.
E lá íamos nós, caminho abaixo, com destino ao Poço da Pedra. Íamos escondidos dos nossos pais. Minha mãe detestava esse nosso costume, que ela reputava de má qualidade, pois achava muito longe, ficava preocupada com a possibilidade de afogamento e eram conhecidos os entreveros e as desavenças da molecada. E além do mais, ela sabia que eu não era de enjeitar briga, embora fosse ainda de pouca idade. Por isso, toda vez que eu chegava do tal Poço da Pedra, levava umas cinco ou seis chineladas, assim uma atrás da outra.
Ali escurecendo, era chegada a hora de amarrar as vassouras-curraleiras e as pontas de capim, para ver a velharada cair ao chão.
Não havia rua capinada e muito menos patrolada. Era tudo mato. As vias públicas serviam muito mais de pasto para as éguas do que de trânsito para os moradores do lugar. Não havia nem automóvel circulando. Assim, o povo locomovia-se a pé, em trilheiros que se formavam entre uma localidade e outra. Isso facilitava o nosso serviço.
Os meninos mais encapetados é que tinham coragem para essas coisas. Eu ficava de longe espiando, escondido na moita junto com outros. A gente ria baixinho, pois senão o desafeto nos descobria e contava para nossos pais. Essa de pai ficar sabendo não podia acontecer de jeito nenhum.
Cada um que tropeçava na armadilha cambaleava, catava mamona, e dava com as fuças no chão. E não tinha esse que não xingava daqueles nomes feios de rachar aroeira. Desgraça e fedaputa eram dos menores. E o tanto que rogavam praga! Da mãe até a terceira geração do arteiro estavam todos praguejados. Eu morria de medo e de remorso, mas não podia falar nada que a gente apanhava dos companheiros. Porém não aguentava sem rir também.
— Praga de urubu não pega em beija-flor! – rebatiam os autores da estripulia, de coração mais endurecido.
O pequeno arraial possuía poucas casas. E as existentes eram erguidas com paredes de adobe. Inclusive a fabricação desses blocos de argila absorvia grande parte da mão de obra naquela época.
Uma das malvadezas da meninada, à noite, era sapatear sobre os adobes feitos durante todo o dia, enquanto restavam ainda verdes. Pessoas havia que perdiam todo o trabalho desenvolvido com sacrifício e suor numa jornada inteira.
Como crianças, acabávamos assimilando o que os adultos faziam em forma de trabalho e garantia de fonte de renda. Gostávamos de fabricar nossos próprios tijolos de barro cru. Usávamos forma de caixa de fósforo e com eles construíamos pequenas casas, formando miniaturas de cidades com ruas e praças.
A cada cidade dávamos nome diferente: Bonfim, Brasília, Anápolis, Goiânia... E não raras vezes, no outro dia, quando voltávamos da escola e sentíamos desimpedidos para a continuidade da tarefa, o Joãozinho do Otacílio já havia passado por lá com aquele botinão quarenta e quatro e macetado tudo. Dava vontade de brigar, mas ele era esperto e corria igual a irara.
Sabíamos da vida de todo o mundo do lugarejo. Trepados na copa frondosa das árvores do Largo da Igreja, noite escura, bem quietinhos, dávamos notícia de tudo que se passava: quem namorava quem, mulher de qual corno estava traindo o marido, quais os homens casados mais sem-vergonha, as biscatinhas mais reguilidas... No outro dia os nomes dos infelizes rolavam de boca em boca, na escola, entre a gurizada.
Hoje me recordo que quando minha mãe me batia – e isso ocorria quase que diariamente – eu costumava resmungar sozinho, lamentando a dura vida de criança: “Um dia vou ficar grande, ah se vou!” – desabafava. “E aí não vou ser preciso apanhar mais não, viu! De jeito nenhum.”, concluía.
Engraçado! Agora, adulto, tenho saudades daquele tempo. Até mesmo das chineladas que eu levava de minha mãe.
Queria ser menino novamente!...











[1] Nome fictício, criado para preservar o nome de um amigo de infância.